terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Dragão Dourado fecha suas portas: minha visão da obra


O Dragão Dourado é uma peça que retrata a exploração de chineses. Em especial, a tragicomédia conta a história de dois irmãos que cruzam o mundo em busca de vida melhor e vêm parar em algum lugar do ocidente (o autor - Roland Schmmelpfennig - é alemão, então, muito provavelmente o destino dos irmãos é em algum lugar da Europa). Com a ajuda do dinheiro dos tios, eles deixam a China. Mas nunca se reencontram do outro lado da viagem. A história do casal de irmãos, como a dos demais personagens, estão entrelaçadas e tem como eixo comum o restaurante expresso de comida chinesa, tailandesa e vietnamita, e que dá título a obra: O  Dragão Dourado.
O jovem chinês é novato no restaurante e sofre de dores de dente crônicas. Ele é apresentado ao público com os outros quatro que trabalham lá na minúscula cozinha. Já o núcleo que retrata a história da irmã recorre a uma metáfora: à fábula da cigarra e da formiga. A irmã é a cigarra que fica presa nas garras da formiga. Assim, a história do irmão é abordada de maneira mais explícita e faz uma crítica a exploração do trabalho, enquanto que a história da irmã é apresentada de maneira mais simbólica/poética e faz uma crítica à exploração sexual.
Ao longo da trama essa lógica se inverte. A cigarra deixa de ser cigarra e é representada como uma jovem que caiu na rede de prostituição. Inclusive há cenas em que a jovem é abusada sexualmente e isso da fim a sua vida. Ao passo que no enredo do irmão, o jovem começa a ter delírios por causa da dor  e sua morte é esboçada de maneira mais poética.
Embora não haja protagonistas na peça, esses dois núcleos são os fios condutores da trama. No entanto, às vezes eu tenha ficado com a impressão de que houve um desequilíbrio entre a núcleo do irmão e o da irmã. Pareceu-me que a história mais importante era a do irmão. Talvez tenha ficado com essa impressão porque o jovem oriental é apresentado de modo mais concreto e a jovem de maneira mais metafórica. Notei que muita gente não entendeu que a cigarra ou a jovem oriental era a irmã jamais encontrada. Para essa pessoas, a trama principal foi só a do jovem que morre de dor de dente em meio ao caos de uma cozinha que não pode parar.  Então, de certo modo, a história do menino chamou mais atenção e foi mais explícita que a da história da menina. A passagem de uma representação mais concreta para uma representação mais metafórica fortalece mais a história do jovem. Enquanto que o contrário, a representação mais simbólica transformada em realismo, invisibiliza mais a personagem feminina.
A crítica é tão profícua que a exploração do trabalho se dá com o homem e a exploração sexual se dá com a mulher. A história mais destacada é a do homem e não a da mulher. O monstruoso do homem - o sangue na boca - é encenado. A violência contra a mulher é apenas simbolizada, narrada. É um retrato tão real da sociedade que na história os descompassos de gênero são normalmente tomados como naturais.
Por outro lado, o que mais me chama a atenção na história e, em especial, nessa montagem é que os gêneros dos personagens e dos atores não estão sempre alinhados, ou seja, atores e atrizes representam tanto papeis de homens quanto o de mulheres. E, particularmente, essa peça conta comigo: uma drag queen. Achei um ato tremendamente político o de tratar dessas questões com naturalidade, ainda que
sob o efeito da máscara do teatro.
Tive quatro papeis na peça. De primeira, fui escalada pra fazer uma das aeromoças que mora no mesmo prédio em que funciona o restaurante. Num primeiro momento eu não gostei muito porque achei meio óbvio. Não há nada mais caricatural uma drag queen fazer o papel de uma aeromoça à la Barbie Girl - e isso no núcleo cômico
do espetáculo. Mas depois eu fui encontrando prazer em fazer essa aeromoça. Acho que dos meus personagens é o que mais cativa o público e que, de fato, é o que eu interpretei sem muitos esforços.
Também fiz uma rápida passagem pela cozinha. Todos os 15 atores interpretaram o papel de um oriental na cozinha. Essa personagem nem deu tempo muito de eu entendê-la. Mas foi uma das que eu mais me diverti pelo simples fato de que era uma cena bem coletiva e que, para ter êxito, necessitava do jogo com os colegas.  
Interpretei também a cigarra na fase glamour. Sinto que esse foi um personagem que ganhei de presente dos diretores. A atriz que faria esse papel teve que deixar o grupo e eu fui escalada pra substituir. Iríamos fazer uma dublagem, uma cigarra que dublaria uma canção. Mas em um dos ensaios o som falhou e a cena tinha que continuar, então cantei. Os diretores gostaram, gostaram da música que escolhi (Como a cigarra - composição de Maria Elena Walsh e imortalizada na voz da Mercedes Sosa) e no final foi isso. Foi a minha cena de destaque em vários sentidos. E com certeza, o primeiro deles foi a coxia. O tempo de troca de figurino era limitadíssimo. Atuava numa cena antes, em que usava um figurino completamente diferente (e isso incluía a peruca) ao da cigarra. Era uma correria danada, mas que com muita ajuda dos colegas de elenco, dava sempre certo. O segundo desafio era entrar, dançar EEE cantar. Interagir com a formiga e com a plateia foi muito divertido.
Depois da cantoria, a cigarra começa a definhar. E nessa mesma cena ela é humilhada. Mudar esses estados e implorar por comida também foi um desafio.
Mas o que eu mais gostei nessa cena é o que significou cantar pra mim. Como vcs sabem só o macho das cigarras é quem canta. Eu fiz o papel de uma cigarra fêmea. Uma cigarra fêmea que canta. Portanto, fui uma cigarra transgênera e esfreguei meu falo transgênero na cara de todo mundo ali.
E, finalmente, o quarto papel que fiz foi o de um jovem rapaz. Foi o papel mais difícil de fazer. O personagem era um jovem rapaz que acabou de descobrir da gravidez de sua namorada. Ele não aceita a situação. Depois ele ainda procura uma prostituta - a cigarra-mulher - para compensar suas frustrações. O complexo dessa cena era que eu, uma drag queen, fazia o papel de um homem, ou seja, um menino que se monta de menina fazendo o papel de um menino.
Meu objetivo era fazer o público esquecer toda aquela maquiagem exagerada no meu rosto, era esquecer o corpo feminino, esquecer o relevo dos seios e enxergar em mim um cara extremamente boçal e machista. Tentei dar bastante contraste com as demais personagens femininas que encenei.
Foi muito bom ter conhecido esse grupo - não sem os conflitos que não faço questão de evitar, tratou-se de momentos de intimidade, amizade e respeito inesperados por mim. Foi muito bom ter conhecido o teatro e a dança nessa profundidade. Foi muito bom ter conhecido nossos diretores-guias. Foi muito bom ter encontrado esse texto - que no começo achei um saco. Foi muito bom ter o retorno e o carinho do público. Sinto que a Jaque cresceu. E é com esse sentimento que O Dragão Dourado fecha suas portas. 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Transfobia declarada em banheiros femininos da Unicamp

No começo da semana, a pequena comunidade trans da Unicamp se deparou com um grafite de banheiro que nos deixou encafifados.
Pixado em um suporte de papel higiênico numa cabine de um banheiro feminino, estava a frase:
"Não deixem os machos ocuparem nossos espaços!" Acrescido do símbolo feminino [imagem abaixo: clique para ampliar].
Como sempre dizem que as minorias adoram se vitimizar, tentamos dar um sentido mais amplo ao dizer. Tentamos imaginar que aquilo não tinha um sentido transfóbico à priori. Imaginamos outros contextos: talvez alguma feminista quisesse falar de mulher pra mulher que homens têm invadido seus espaços de representação. Eu mesma imaginei essa frase no contexto dos anos 60/70, quando o mercado de trabalho era massivamente ocupado pelo homem. Talvez elas quisessem dizer que o "mercado de trabalho" também é um espaço para elas. Aqui na universidade, talvez estivessem querendo dizer que todos os espaços também pudessem ser femininos, que mulheres também podem ser engenheiras (além de engenheira de alimentos), físicas, químicas, etc.
Mas logo a minha análise diplomática caiu por terra. Notei que a(s) autora(s) da frase empregava(m) a palavra "machos" e não "homens". Se ela(s) quisesse(m), de fato, transmitir uma mensagem de luta pela igualdade das mulheres, ela(s) teria(m) de usar "homens". Mas a palavra escolhida foi "machos". O que essa simples palavra quer dizer é: mulheres trans, vcs não tem vagina (e mesmo que você se opere, vc não nasceu com vagina). É que pra esse tipo de gente, a vagina tal qual a da mulher cisgênera, é a essência da mulher. Então, quando ela(s) diz(em) "machos", o que ela(s) quer(em) dizer é que mesmo que a mulher trans se considere uma mulher, ela não será uma mulher verdadeira. A mulher trans é, antes de tudo, um macho. Ela tem um falo, portanto, é um macho.
Além disso, o que significa "nossos espaços"? A que espaços as autoras da frase se referem? Depois de empregar(em) "machos", o dêitico "nossos" acaba de ganhar seu referente: aquela cabine feminina, os banheiros femininos.
Sobre a(s) autor(as), não da pra saber se é uma ou mais de uma, mas a frase representa uma ideologia: a das feministas radicais, as chamadas TERFs, as quais perseguem incansavelmente mulheres trans. É um discurso de ódio: transfóbico. É um discurso ignorante: cissexista.
Depois, ao longo dos outros dias, novas frases foram encontradas. E de uma vez por todas, as mulheres trans não estão se vitimizando. Elas são, realmente, vítimas dessa visão de mundo centrada na cisgeneridade.

Outras duas frases parecidas foram encontradas em outros banheiros: "não deixe que os machos invadam seus espaços", "não exclua mulheres por causa de machos". Realmente, ela(s) tiveram a oportunidade de usar mesmo a palavra "homens", mas é "machos" que aparece reiteradamente em todas as mensagens.
E pra não restar dúvidas, ela(s) ainda fizer(am) questão de ser mais explícitas em outras mensagens: "ser mulher não é calçar nossos sapatos". Quer coisa mais essencialista que categorizar o "ser
mulher" pelo sapato? Se isso é feminismo, tá meio capenga não? [Nota: tinha outro recado em diálogo a esse que serviu para bugar a cabecinha dessa gente: "sou sapatão e não uso calçados femininos, e aí?"]
E pra arrematar, o bilhete que mais explicita a ideia de que macho tem pênis: "Vamos cortar a sua pica!".


Há muitas coisas a se pensar diante de uma atitude dessas: as mulheres trans universitárias não estão passando incólume por essa sua etapa de formação. Isso não é novidade. Todas elas estão calejadas pela transfobia e cissexismo cotidiano. Não é um grafite anônimo de banheiro que vai nos excluir, seja da universidade seja do banheiro. Mas uma coisa é certa: vocês também não passarão incólumes.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Drags e o desprestígio feminino

Em face ao feminino, já é bastante sabido que o masculino tem seu lugar de garantido prestígio. O feminino, em várias ocasiões, é rechaçado em nossa cultura. Não é à toa que encontramos uma tipologia em que se pode enquadrar crimes como feminicídio, ou até mesmo, sejamos obrigados a criar leis que protegem mulheres cis, como é o caso da famosa Lei Maria da Penha. No fundo, trata-se da velha misoginia exercida em seus diferentes graus e que não encontra equivalente para o masculino, pelo menos não na mesma proporção e tampouco pelo acúmulo de anos de tradição.
A misoginia no meio LGBT é algo bastante recorrente. A começar pelos próprios supostos protagonistas da comunidade LGBT, os G. Sabemos que os gays, se quiserem ser respeitados ou até mesmo sair da sua invisibilidade afetiva, são quase que obrigados a performar um comportamento “másculo”. Gays afeminados (ou “afetados” se preferirem) não só são alvos mais frequentes de crimes homofóbicos, como são bastante desprezados pela parcela máscula da comunidade, e às vezes pela não tão máscula também.
Mulheres cisgêneras comumente também são alvo de comentários misóginos por parte dos gays. Ou
vai me dizer que nunca ouviu um amigo gay dizer que tem nojo do corpo de mulher cis? Muito embora seu amigo tenha tentado se esquivar com o velho argumento de que se trata de “gosto” e não de misoginia.
Mulheres trans, principalmente as travestis, sofrem bastante discriminação dentro do grupo LGBT. Talvez por, além de serem mulheres, elas rompam com as expectativas da compulsoriedade cisgênera.
No meio disso tudo, estão as Drag Queens. E aqui existem dois movimentos que se contradizem: ao mesmo tempo em que as drags são bem aceitas e bem respeitadas na noite por seu público, elas, geralmente, são também alvo da misoginia. Tem muito mocinho que não namoraria uma drag, simplesmente pelo fato de ela ser uma drag.
Fico tentando entender porque drags são personalidades na noite e as respostas que consigo delinear são:
i)                    Drags glamourizam o feminino. E o glamour é tido como algo positivo para os protagonistas gays. É muito tenso pensar que esse fator ultra mercantilista é uma das engrenagens para o sucesso drag.
ii)                   RuPaul conseguiu conquistar outra grande protagonista do mercado: a classe média. RuPaul conseguiu expandir o nicho drag para além do gueto e das boates e entrou nos lares da classe média.
iii)                 A drag é exotificada. Por ter um visual exótico e por ter um mistério de transformação, a drag não passa despercebida.

Seguramente, haverá muitos outros fatores que explicam o relativo prestígio de uma drag. Se o interseccionarmos a outros quesitos, como o de classe, escolaridade, raça, etc encontraremos insights bastante profícuos.

Agora, quanto à misoginia simbólica a que é submetida, sabemos de cor e salteado que o machismo nosso de cada dia é o grande responsável pela padronização, castração e recalcamento das liberdades dos corpos e dos gêneros. 

Fotos by Erik Nardini

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Bia Bagagli e os jornalistas

Oi, pessoal

hoje eu apresento a vocês uma entrevista feita com a minha grande amiga Bia Bagagli.



Na verdade, as perguntas em questão não são minhas. É que a Bia topou responder um questionário elaborado por uma estudante de jornalismo da Unesp de Bauru, cujo nome é melhor não divulgar.
Aproveitei a "deixa" para gravar a entrevista com a Bia e ilustrar como ALGUMAS perguntas de ALGUNS jornalistas E ALGUNS estudantes de jornalismo  muitas vezes exotificam a mulher trans.

Abaixo segue o link da conversa:

Up date: achei melhor apagar o nome da "dona" das perguntas, porque senão estamos dando foco ao indivíduo, e como sabemos o problema é estrutural.
Pelo que a Bia me contou, a garota derramou algumas CIS TEARS. Acusou-me de ser anti-ética (eu, né?), tratou-me como um homem e me chamou de aproveitadora. 
Aproveitadora eu sou mesmo. Aproveito todas as oportunidades, inclusive as de questionar problemas estruturais. E vou continuar desnaturalizando, enquanto eu puder, essa norma cissexista que teima em exotificar as pessoas transgêneras.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Sobre o ato contra o brutal assassinato de Géia Borghi

Ontem estivemos reunidos nas ruas do centro de Campinas para fazer um ato contra o brutal assassinato de Géia Borghi.

Abaixo segue o relato de Amara Moira, uma das organizadoras da manifestação.
Amara tem sido uma das minhas grandes colaboradoras nesses últimos tempos. Mulher transgênero, ela tem tentado se aventurar no mundo da prostituição e tem deixado seus relatos registrados na sua recente página do site feices: "E se eu fosse puta: Amara da depressão".

***


Não sei o que me deu, só sei que saí de mim. Vendo a EMDEC meio arredia em parar o trânsito, decidi
eu mesma ir tentar a sorte e entrei na Av. Glicério. O primeiro carro nem tomou consciência e acelerou violentamente na minha direção me obrigando a retroceder, mas não deixei barato com o segundo: parei na frente, ele acelerou e, então, virei de costas pra ele perceber que eu não sairia dali. Foi pura adrenalina quando ouvi o carro brecar com tudo e dar um totozinho na minha bunda... parei o veículo na buzanfa, aí aproveitei pra sentar no capô e sambar no foda-se do motorista, esfregando o cartaz nas fuças dele: "ESSA TRAVESTI VCS NÃO MATARAM!"
A euforia tomou conta de mim e dali em diante nada mais me detinha. Paramos a rua, botamos o carro de som pra gritar, cada uma das pessoas que queriam falar sobre a Géia se revezando no microfone e exigindo a plenos pulmões justiça e respeito para com Géia Borghi, para com LGBTs. Boa parte não eram discursos de militantes mas sim de amigas e amigos de Géia, gente que a conheceu no hospital e que aprendeu a respeitá-la testemunhando sua competência e empenho, sua dedicação obstinada em salvar vidas de crianças. Não sendo falas militantes, muitas vezes diziam o que não queríamos ouvir, p.ex. quando enfatizavam a injustiça de Géia ter sido brutalmente assassinada apesar de ser uma transexual decente, ou seja, era inaceitável que ela tivesse a vida ceifada mesmo não sendo puta, promíscua e escandalosa (coisa particularmente dolorosa para nós putas, promíscuas e escandalosas que ali estávamos prestando nossas homenagens e emprestando nossa força para o protesto). No entanto, mesmo essas falas que diziam o que não queríamos ouvir, elas também nos tocavam fundo, nos faziam chorar com as recordações dos feitos admiráveis de Géia, sua habilidade em reavivar a vida em crianças que estavam nos últimos suspiros, nos braços de mães já conformadas com a catástrofe, sua felicidade mesmo em empenhar a própria vida para que outras vidas pudessem seguir seu caminho serelepes mundo afora... chorei ao escutar esses depoimentos, todos cheios de contradições, porque o mundo é contraditório, a minha fala mesma sendo super contraditória, improvisada, estropiada.
Géia também era assim, uma militante por tabela, obrigada a sê-lo pra poder existir, pra poder sobreviver, como toda travesti: viver para nós é um ato político e escancaramos nossa militância na testa, todas sempre prontas para enfrentar agressões e revidar à altura, na horinha mesma, senão corremos o risco de virar poeira. 
Géia cavucou todas as brechas que pôde e ingressou no mercado formal de trabalho; não sendo puta, fugiu ao destino de 90% de nós travestis e transexuais -- nunca, no entanto, se furtando a nos respeitar e a conviver com nós que não buscamos esse seu caminho; brilhou na noite e encantou gerações de LGBTs do Brasil inteiro, pioneira na confecção de roupas inusitadas a partir de lixo, inovadora na arte das dragqueens a cada aparição nos palcos, generosa com todes que a cercavam atrás de conselhos e de apoio para igualmente brilhar. E mesmo fugindo a todo o estereótipo das travestis ("decente", "não escandalosa", "sempre bem vestida", conforme dito no protesto), mesmo assim teve o fim que todas temos, a mesma morte brutal banalizada por uma polícia que teima em fazer pouco caso das nossas dores, banalizada por uma imprensa que persiste em nos desrespeitar nos tratando no masculino, exibindo esse dado estapafúrdio que é nosso nome do RG (a razão social, ao invés do nome fantasia com que nos conhecem), banalizada por uma sociedade que segue nos culpando e desejando nosso extermínio pelo simples fato de não conseguirmos nos entender como homens só por termos nascido com pinto. 
Géia teve o fim de todas nós, mesmo evitando os caminhos que a maior parte de nós toma, o que mostra que pra essa sociedade transfóbica não importa nada do que sejamos capazes de fazer -- seremos culpadas sempre, sob ameaça garantida de pena de morte enquanto teimarmos em existir.
Por isso somos militantes obrigadas, mesmo sem o querer, mesmo quando queremos sossego. Existir não é fácil quando se é travesti.

PS: deixo abaixo algumas exceções boas que esse protesto gerou na mídia, a escrita sempre certeira e respeitosa de Neto Lucon, as fotos maravilhosas do Código 19, a redação oscilante mas já bastante mais respeitosa que o G1 nos concedeu (respeitando o gênero de Géia, mas ainda voluntariando essa coisa idiota do nome do RG).


sábado, 11 de outubro de 2014

Géia Borghi, uma estrela que cruzou meu destino

O cenário drag de Campinas pra mim é um lugar bastante novo. Apesar de eu já ser conhecida de um pequeno público, ainda não sou muito conhecida pelas demais artistas drags que colorem as noites e boates da cidade, tampouco sou conhecida pelo grande público que as segue.
Recentemente tenho tentado me inserir mais. Tenho participado de concursos na cidade e tentado me entrosar com algumas meninas. 
Pois.... foi em um desses concursos que conheci a Geia.
Ela fazia parte do jurado daquela noite. Lá do camarim, ouvi o nome dos presentes. Quando citaram que a Geia ali estava, fiquei emocionada em me apresentar pra ela, a referência das referências.
Cheguei na boate Subway bastante cansada, era meu terceiro show da noite. Tinha saído de casa às 2h30, depois de uma passagem meteórica como performer e apresentadora da festa do Babado, na Unicamp. A previsão para o início do concurso era 3h. Cheguei toda esbaforida no camarim faltando 5 minutos para tudo começar.
Entrei, fiz meu número. Era uma música meio dramática, melodiosa em espanhol. Senti que não havia alcançado a plateia. Acho que as pessoas esperavam uma música mais alegre ou uma maior empolgação da minha parte. Rompi as expectativas. Rompi também por um pequeno detalhe, o meu tamanho: não se espera que uma drag seja minúscula. Optei também por um figurino mais limpo: sem brilhos e nem pedras. Queria chamar a atenção para o glamour da simplicidade. Embora eu parecesse esplêndida pra mim, aparentasse latinidade, quase ninguém entendeu a minha proposta. Quebrei o clima completamente.
Fiquei bastante chateada por não ter dado conta do recado. Fui embora de ônibus, pensativa, sozinha, chateada. Dois dias depois, no meio do desânimo, a Geia me encontrou no site feices e me chamou para conversar. Ela disse que eu havia chamado a atenção dela. Fiquei bastante lisonjeada e o desânimo passou na hora. Daí, na lata, ela disse que eu deveria fazer Edith Piaf. Geia achava que Edith combinava mais com o meu corpo, por causa da nossa pequena estatura. Falou que me faltava direção e uma escolha mais adequada de repertório.
Ela também me deu conselhos: "Não seja mais uma drag comum. Seja vc, autêntica e com estilo próprio."



Tudo isso, eu gostei demais. Fiquei muito feliz, porque via nela uma mãe que não tive. E justo ela que fazia uma linha que me agrada demais. A nossa amizade estava apenas nascendo.
Num meio em que você leva alfinetada o tempo todo, num meio em que qualquer detalhe da sua maquiagem ou figurino é ridicularizado, num meio em que o corporativismo te impede o acesso aos palcos, num meio em que há muita rivalidade, eu via na Geia uma grande pessoa acolhedora. Ela não tinha nada a ganhar comigo, uma simples novata. Mas ela foi demais, me acolheu e me recebeu com conselhos preciosos. Falou o que eu tinha que escutar, fez sua crítica, deu suas sugestões. Passei a admirá-la ainda mais.
Isso tudo faz menos de 15 dias. Com seus quase 15 dias, o pequeno broto da nossa amizade foi dilacerado pelo ódio transfóbico de criminosos.



Em sua homenagem, dedico a canção de Piaf que havia gravado dias depois de seus conselhos.
Link da música: aqui


Querida Geia, aposto que você também não se arrepende de nada. Valeu a pena te encontrar, ainda que fosse por tão pouco tempo. Obrigado por ter cruzado meu destino.


P.S. > Pessoal, segunda-feira (13/10) é dia de luta. Estão todos convocados a comparecerem no ato contra esse brutal assassinato. A concentração vai ser no largo do Rosário, a partir das 17h. 

Link do evento: aqui



terça-feira, 7 de outubro de 2014

Indianara Siqueira: entrevista

Na nossa primeira entrevista gravada, conversamos com ela, uma das assessoras do deputado reeleito Jean Wyllys, a queridíssima Indianara Siqueira, que fez uma breve passagem pela cidade de Campinas.
Em outra ocasião tivemos a oportunidade de entrevistá-la também, mas foi só por escrito.
Se quiserem saber um pouco mais sobre ela, aconselho que leiam a entrevista antes de assistir o vídeo abaixo. É só clicar aqui.
Indianara veio participar da mesa de abertura da IX Semana Vegetariana da Unicamp.
Além de ser uma reconhecida militante em prol dos direitos humanos, Indianara, que é vegana, luta também pelos direitos animais. Em breve, lançaremos na página "E se eu fosse puta - Amara da depressão" a fala na íntegra de nossa amiga.
Depois das formalidades,  fomos para um bar e, em clima de bate papo, fizemos as mais variadas perguntas a Indianara.
Ela nos explicou sobre o movimento desaquenda, falou sobre prostituição e sobre a lei Gabriela Leite.
Se eu fosse você, não perderia nenhum minuto dessa entrevista.


Peço desculpas de antemão por causa do ruído de fundo, afinal estávamos num bar e não queríamos abrir mão das informalidades. Também não apareço montada nessa entrevista, pois não houve tempo. Ficamos sabendo da estada de Indianara em cima da hora.


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Luciana Genro respondendo as declarações homofóbicas de Levy Fidelix

No debate eleitoral ocorrido na TV record ontem, dia 28 de setembro, o discurso homofóbico do candidato Levi Fidelix, do PRTB, arrepiou até os cabelos da minha peruca.
É um clichê, mas é verdade que as feridas ocasionadas por um discurso odioso é tão ou mais perigoso que o de uma bala. É como disse o Sakamoto:

"Pessoas como ele dizem que não incitam a violência. Não é a mão delas que segura a faca ou o revólver, mas é a sobreposicão de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários'', quase um pedido do céu. São pessoas como ele que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo".

Ao comparar homossexualidade (acredito que ele deve entender nada sobre os segmentos trans) à pedofilia, ao dizer que quer os LGBTs bem longe da boa família brasileira, o que Levy sugere, no fundo, é a REJEIÇÃO. É a perpetuação da REJEIÇÃO através de uma política higienista. Ele quer nos rejeitar e empurrar-nos para debaixo dos tapetes.

O mais agravante é que ele não quer apenas nos silenciar, ele sugere o nosso EXTERMÍNIO!

"Nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria, vamos enfrentá-los! Não ter medo de dizer que sou pai, mamãe, vovô! E o mais importante é que esses que têm esses problemas realmente sejam atendidos no plano psicológico e afetivo, mas bem longe da gente, bem longe mesmo porque aqui não dá".

Alguém me explica que ideia maluca é essa de política de maiorias?
Será que ele é desse políticos que acha que democracia é a reunião de opiniões de maiorias?

Sinto muito, mas democracia não é isso. Democracia é quando há espaço pras minorias existirem, e quando há políticas públicas que protegem essas minorias. Invocar que a maioria extermine uma minoria, isso já é fascismo.

Por isso, minha gente, não tenho vergonha de dizer que meus votos vão para aquele/as comprometido/as com a nossa luta.

Aqui abaixo, temos um delicioso vídeo de resposta proferido por Luciana Genro num debate realizado hoje (29/09):


Na íntegra:




domingo, 29 de junho de 2014

A nau dos rejeitados

O filme "Tacones lejanos" (De salto altos), de Almodóvar, me fez pensar sobre rejeição. Trata-se da história de uma mulher rejeitada em vários momentos. 
A protagonista Rebeca, já nos é apresentada como sendo rejeitada desde o princípio por seu padrasto.
Sua mãe, Becky, é uma cantora famosa que está por deixar a Espanha. Becky recebe a proposta de ir trabalhar no México. Contudo, seu marido não permite a viagem. É aí que Rebeca demonstra sua devoção à mãe. A protagonista, então uma criança, troca os remédios do padrasto, este adormece ao volante e morre num acidente de carro. Rebeca, desde cedo, concede a liberdade a sua mãe, que parte com a promessa do retorno. Retorno que é adiado por 15 anos. Durante a ausência da mãe, Rebeca alimenta uma imagem materna perfeita que persegue para si. Depois de passar 15 anos distante, Becky ao regressar a Espanha, encontra sua filha Rebeca crescida e casada com um de seus companheiros do passado, Manuel.
A cena mais marcante quanto à rejeição é aquela em que Rebeca revela à mãe que, mesmo distante, ela sempre continuou sendo sua figura de inspiração. Ao longo dos anos, a filha tentou alcançar o mesmo êxito que o de sua mãe. No entanto, como Rebeca mesma admite, ela jamais o conseguiu, considerando-se, assim, apenas uma filha medíocre, aquém dos feitos da mãe. Mesmo tendo aparentemente superado-a no que diz respeito aos homens - Rebeca se casara com um ex de sua mãe - nem mesmo no amor Becky é vencida. Ao retornar a Espanha, Becky passa a ser a amante do marido de sua filha. A rejeição da ausência se confirma no retorno. Além disso, Manuel também é um personagem que rejeita bastante Rebeca, seja pela morbidez do relacionamento seja pelos casos de traição.
Esse filme me fez lembrar que ultimamente tenho ouvido muitas histórias de rejeição. Cada uma a sua maneira: ou o amor que não foi correspondido em um relacionamento, ou a substituição de um parceiro por outro, ou uma doença incurável etc.
O sentimento de rejeição é uma coisa muito ruim, abala a autoestima do rejeitado. E isso tem tudo a ver com os padrões sociais. 
Todas as pessoas que pertencem a uma minoria já sentiram esse sentimento de rejeição. Pobres já foram esculhambados por não serem ricos. Gays já se sentiram rejeitados por não serem héteros. Afeminados já foram preteridos por darem pinta. Transgêneros se sentem rejeitados pelo cistema. Gordos já se sentiram indesejados por não serem magros. Negros já foram indeferidos por não serem brancos. Soro positivos já choraram escondidos por não se sentirem desejados. Baixinhos já tiveram seus complexos à mostra diante de um altinho.
É claro que há quem ame cada um com sua diferença. Independentemente disso, em algum momento da nossa vida, todos nós já nos sentimos rejeitados.
O padrão grita o tempo todo, crescemos num meio que o naturalizou. E esse padrão, por mais fortes e conscientes que sejamos, ainda nos abala. Não conheço ninguém que goste de ou queira ser excluído. Assim, vivemos num impasse: como abalar o padrão sem deixar que ele nos abale?
Eu não tenho essa resposta. Sou idealista, mas também sou imediatista.
Às vezes me pego escorregando nos desejos. Me pego também desejando esse padrão. Mas é difícil me sentir culpada. Não estou acima do que eu vivo cotidianamente.
Sei que é meu dever contribuir para a quebra do prestígio de padrões, mas eu também quero viver o tempo em que ele estará derrubado. É AGORA que eu não quero me sentir rejeitado. Enquanto isso, vamos tocando a nau dos rejeitados, consolando-nos uns aos outros, se isso ainda é bálsamo para nossas feridas.   

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Entrevista com Lara Top

A nossa entrevistada de hoje é Lara Pertille, a Lara Top. Ela tem 26 anos, é campinera e formada em Jornalismo. Apesar de sempre ter morado em Paulínia. Mora com a mãe Josefina, mais conhecida como Kita, em quem ela sempre se inspira. Segundo ela: "Sempre usei o estudo como fonte de enriquecimento e combate ao preconceito diário. Sempre trabalhei em empregos formais, desde cedo e uso isso como fonte formação de caráter do indivíduo". A gata ficou popular entre os universitários gays da Unicamp, depois da divulgação do seu vídeo "Amapô num quenda chanã".

Jaqueline Furacão: Como surgiu a Lara Top?

Lara: Lara Top surgiu logo no começo dessa transformação minha comigo mesma. Era um momento de descoberta pessoal como social. Quando comecei a sair na noite a “moda” no momento era uma ´glamourização´. A noite GLS era algo inspirado em filmes, mulheres de cinema, enfim. Existia uma cultura enraizada por trás de todo aquele “personagem” e espetáculo.

Jaqueline Furacão: Laríssima, conta pra gente como foi essa história do vídeo. Vc esperava que ele tivesse essa repercussão que teve? Vc me disse uma vez que aquele dia, o da viagem para ver o show da Amy Winehouse, tinha sido barra pesada por causa de um bapho que aconteceu no banheiro da rodoviária. Conta pra gente sobre esse dia.

Lara: Na verdade até hoje me assusto com a popularidade daquele vídeo. Afinal ele foi produzido sem pretensão nenhuma de fama ou algo parecido assim. Ele foi feito em forma de um protesto contra uma menina que estava incomodada por eu e meus amigos estarem fumando cigarro em um lugar aberto perto dela no estádio do Morumbi. O mais curioso disso tudo é que era no show da cantora Amy. Pra quem não sabe Amy ganhou destaque com seus diversos envolvimentos com drogas licitas e ilícitas.
Na minha cabeça aquilo era um contraponto total. Uma menina (no vídeo ela aparece no fundo da tela) incomodada com a fumaça de um cigarro de um grupo sabendo que na época nem existia a lei que proíbe cigarro em lugares fechados.
E o vídeo surge disso tudo de um protesto meu, em que um amigo (Mario Clarindo) filma minha revolta e indignação e posteriormente outro amigo (Gabriel Borges) posta no youtube. Mas tudo isso em forma de brincadeira.

Preconceito:
Na volta do show da Amy, eu e meu grupo de amigos estávamos exausto por conta do show. Ficamos em pé por horas, morrendo de fome. Chegando ao metrô, perto do estádio do Morumbi (não me recordo o nome), o que eu mais queria era lavar minhas mãos pra poder comer algo o mais rápido possível. Mas foi aí que minha labuta começava. Meus amigos arrumaram um lugar para deitar e poder esperar o ônibus sair pela manhã. Eu sai sozinha em busca do primeiro banheiro para lavar, até então, minhas mãos. Inocentemente retirei o dinheiro pra pagar e poder usar o banheiro feminino normalmente, quando fui barrada por uma funcionária do metrô. A alegação era de que “pessoas como eu não poderia usar o banheiro feminino para não constranger as mulheres”. Minha revolta subui na cabeça na mesma hora. Pedi para ela chamar seu superior. O chefe chegou e usou a mesma frase que a da funcionária. Quase tive um infarto por tanto preconceito enraizado naquele ambiente. Batemos boca e fomos até um posto policial, que tem dentro no metrô, pra que os policiais decidissem seu eu poderia lavar minhas mãos no banheiro feminino ou não. Foi um tremendo absurdo, mas enfim, era minha única saída.
Isso só estava começando minha guerra por um direito meu. No posto fui hostilizada, humilhada, servi de chacota para os demais, por pessoas que até então deveriam me defender. Mas em momento nenhum pensei em recuar e desistir, aquilo era uma questão de honra pra mim. E após quase 3 horas de bate boca num triângulo: policais, metrô e eu, o metrô decidiu que eu poderia usar o banheiro feminino, mas os de uso de funcionários, assim ninguém me iria ver usando. Mesmo sabendo que isso não era certo, vi ali uma vitoria minha conquistada.
Mas lembro-me até hoje de uma frase de um dos policiais: “tá se achando a gostosa, aqui isso nunca foi permitido”. Eu simplesmente respondi: “só espero que eu não seja a primeira e a última pessoa a usar o feminino”.

Jaqueline Furacão: Por falar em banheiro, na última festa do Babado, o Babado de Verão 2014, que aconteceu na Unicamp, vc também foi vítima de um ato de transfobia. O que aconteceu?

Lara: Eu fui convidada por um grupo de amigos a ir prestigiar a festa realizada dentro da Unicamp (babado de verão). Fui como sempre, de braços aberto. Reencontrei amigos. Pessoas que nem conhecia, mas dão risada até hoje com meu vídeo, enfim. A festa estava deliciosa e civilizada até que eu decidi ir ao banheiro.
Entrei normalmente e ao sair, uma menina maldosamente exclama a frase: “Como tá lotado o banheiro aqui, acho que só quem tem vagina deveria usar o banheiro feminino”.
Aquilo me afetou de tal maneira que meu amigo que estava comigo percebeu e me puxou pelo braço para que algo de mais grave não estragasse a festa toda. Afinal, Jaque, eu fui educada desde pequena a respeitar o limite de cada um. E principalmente lutar pelos meus direitos. Imagina você, se eu vejo algo errado perto de mim: eu vou e defendo. Imagina quando é comigo. Minha luta na vida diária é contra injustiça social. Isso independente de quem seja. Acho que deve ser por isso que muitas pessoas torcem o nariz quando me veem (kkkkkkkkk). Levar desaforo pra casa, jamais.

Jaqueline Furacão: Paulínia, onde vc mora, tem um pólo cinematográfico importante. Soube que vc já trabalhou como maquiadora para a indústria do cinema. Por que vc não faz mais cinema?

Lara: Jaque, eu sempre trabalhei em empregos formais e desde muito cedo. Sempre tive uma vida confortável, mas fui criada a nunca depender de ninguém e conquistar a independência financeira. Me formei como jornalista, trabalhei e trabalho como free lance ate hoje. Mas precisava sobreviver na vida. Foi daí que investi como cabeleireira e maquiadora profissional e me joguei. Quando surgiu a oportunidade de trabalhar no cinema me joguei de cara. Era para trabalhar 9 horas diárias. Mas aquilo era tão mágico para mim que muitas vezes eu trabalhava 15 horas por dia por conta própria. Só para poder ficar perto daquela fantasia toda. Mas para quem tá começando, financeiramente não dá. Salários baixíssimos, horários complexos e nada de reconhecimentos. Eu me sacrifiquei e trabalhei em 4 filmes, o mais conhecido é o filme “De pernas pro ar”.
Depois disso, decidi seguir meu próprio caminho. Amei tudo aquilo e claro que se surgisse uma boa oportunidade faria com todo amor do mundo, afinal escovas e pincéis são minhas paixões. Não me arrependo de nada, pelo contrário. Foi através do cinema que consegui reconhecimento profissional e muitas portas se abrem até hoje para eu poder mostrar meu trabalho. Mas resumindo: eu parei com cinema por conta do financeiro mesmo. Mas to aí de braços abertos.
Nunca tive medo do emprego e sempre gostei de desafios. Já trabalhei em varias áreas, até animando palestra de sex shop já fiz muito. Encaro todo trabalho com muito respeito e dignidade.

Jaqueline Furacão: E ao longo de sua vida estudantil, houve algum momento crítico em que vc pensou em sair da escola/faculdade por causa da transfobia?

Lara: A minha vida sempre foi barrada por lutas diárias de preconceito. Eu me lembro que na escola, quando a professora saia da sala, todo mundo da sala parava para cantar músicas de duplo sentido para mim. Era humilhação mesmo. Desde xingamentos até ameaças de agressões, mas nunca apanhei.
Mas vim de uma boa educação, minha mãe é pedagoga. Aprendi desde cedo que a escola é instrumento de formação de cada indivíduo. Nunca pensei em desistir daquilo tudo. Pelo contrário, era da onde tirava mais força para ser sempre a melhor e mostrar que apesar de eles me julgarem, existia um ser humano que pensava muito mais que eles ali.
Deve ser por isso que hoje não suporto ver injustiça social com pessoas indefesas. Quando presencio isso, passa um filme na minha cabeça, e nunca consigo ficar quieta.
Já na faculdade, nunca sofri nenhum tipo de preconceito. Acho que por ter me formado em uma faculdade adventista, as pessoas sempre souberam respeitar minha individualidade. E na faculdade fui convidada a ser juramentista da turma de jornalismo. Isso sim foi uma enorme realização na minha vida. Foi a confirmação de que o respeito e o caráter independe de orientação social de cada indivíduo.
Quando se tem respeito, amor, caráter e dignidade é mais fácil combater o preconceito do outro.


Minha mensagem final é: Ame mais, lute por aquilo que você acredita. Tenha fé. Trilhe seus próprios caminhos. Seja independente. Tenha coragem e nunca abaixe sua cabeça para comentários maldosos. Mantenha a paz no coração. O amor e respeito pelo próximo. E a união de um mundo melhor. 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Aniversário de Jaqueline Furacão

No mês de maio faço aniversário como Drag Queen.
Não sei precisar ao certo quando tudo começou. Talvez eu devesse dizer que tudo começou com uma brincadeira, mas não foi bem assim. Essas mudanças são paulatinas e talvez já estivesse traçada desde o momento em que decidi perceber que as categorias não são tão estanques. Assim, ser Drag pra mim não é ser apenas um personagem. Hoje posso dizer que a montaria afeta à todo momento o meu não-personagem. A performance que achava ser consciente, digamos que hoje já não é tão voluntária assim. Chego a essa conclusão porque às vezes me pego opinando em ambos estados. Às vezes não sei se devo postar uma opinião no meu perfil do face como Jaque ou como Diego. Mas é claro que a postura num perfil midiático é sempre controlada e noto que a única diferença é a maneira desse controle: como Diego não me esquivo da imagem de bom linguista, de gay crítico, etc, como Jaque a de Drag ativista.
Mas sobre essa psicologia da sexualidade, quero deixar para um outro post. Hoje mesmo quero fazer um exercício de memória sobre a minha trajetória como Jaque.
Lembro de há muito tempo atrás ter vestido a roupa de uma menina que morava comigo à época. Eu tinha o cabelo longo até metade das costas. Achei aquela experiência fabulosa. Alguns meses mais adiante repeti a façanha na casa de uma das minhas melhores amigas. Ela era exatamente do meu tamanho e me emprestou toda a indumentária. Nesse dia, eu apenas fui atender a porta. Tínhamos pedido comida por telefone e recebi o entregador montada. Achei incrível que eu pudesse fazer isso.
Essas foram as minhas experiências conscientes que tive no âmbito particular. . Houve uma ou outra vez que brinquei com as maquiagens em casa, mas tudo ocorreu dentro de casa. As próximas vezes que me lembro de ter feito isso de novo já ocorrem publicamente.
Uma delas foi numa festa à fantasia que ocorreria na Unicamp. Essa foi a pior vez de todas as que me montei. Foi quando senti a transfobia de perto. Na ocasião, lembro-me de ter usado as roupas dessa minha amiga que citei anteriormente. Mas foi algo mais sofisticado: pela primeira vez eu fazia uma maquiagem pesada (feita também pela minha amiga), fiz chapinha no meu cabelo enorme e liso. Levei umas duas horas me arrumando. Quando fiquei pronta, meu então namorado disse que se recusava a sair comigo desse jeito. Era aniversário dele e ele se irritou com aquilo tudo. A conclusão é que eu me recusei a me desmontar e fui para a festa sem ele. Subi na bicicleta (sim, eu fui montada e de bicicleta) e lá encontrei um amigo que me esperava. A coisa foi ainda pior, meu amigo sentiu vergonha de sair comigo e dizia que aquilo não era uma fantasia. De fato, eu parecia uma travesti. Apesar de que nada justificava a vergonha. As pessoas na festa não me reconheciam de imediato. Isso era bem legal, eu estava experimentando uma identidade nova. Mas, me senti muito insegura, a montaria em si já te deixa insegura. E ainda tive o agravante de não ser apoiada pelas pessoas próximas.
Voltei pra casa pouco depois de estar por lá apenas meia hora. Ao mesmo tempo que tinha sido uma experiência muito bacana, eu me sentia mal. Não me montei mais por um longo tempo. O namoro acabou naquela noite e desde então me afastei do amigo.
Fui me montar novamente só quando fui morar em Madri, em 2009. Até então meu nome era Diana e não Jaqueline. Me montei várias vezes, mas a mais marcante foi no carnaval de 2010. Peguei tudo emprestado de uma amiga. Eu ainda não tinha perucas. Usei meu próprio cabelo, que estava meio chanel. A maquiagem era a mais elementar. Não sabia fazer pele, muito menos como se escondia uma sobrancelha.
Sempre fui frequentadora de boates, e sempre me fascinei pelas performances das drag queens. Por eu ter um corpo mais andrógeno, cabelos longos e alguns sinais de feminilidade no corpo, as travestis que conhecia nas boates sempre me diziam que eu levava jeito para travesti. Algo parecido acontece quando gays olham para algum hetero e dizem: vc não me engana. As travestis diziam isso de mim. Mal sabia eu que elas tinham razão em parte. Pois o que me atraia demais numa boate não era só a sensação de ser livre sexualmente, mas de poder ver os shows de Drag. Desde sempre eu observava os shows. Vi muita coisa ao vivo e durante anos fui estudando a retórica de cada Drag que eu tinha contato. Gostava de frequentar uma boate que se chamava "Insano", mas que logo fechou. Então passei a frequentar a "Dont Stop". Fui poucas vezes na "Subway" e nunca cheguei a ir às domingueiras da "Double Face". Fui também na antiga "The Club". Essas eram as casas que acolhiam as Drags. Eu acompanhava a agenda de cada uma, mas podia frequentar mais a "Dont", os outros lugares eu não podia, pois não tinha como ir. Muitas vezes não fui por falta de grana, mas muitas vezes eu ficava sem companhia para ir à demais casas. Meus amigos e até mesmo meu novo namorado daquele tempo não gostavam de ir às outras casas. Elas eram completamente desprestigiadas pelos gays cisgêneros. A "Double face", por exemplo, era considerada um gueto trans. Quase nenhum gay "decente" gostava de se misturar com o tipo de gente que frequentava a Double. Desde essa época eu queria morrer com essas coisas. Eu só não sabia que o nome desse preconceito era a transmisoginia.
Hoje, é um pouco diferente: a gente já vê drags fora desses guetos. Algumas passaram a frequentar espaços exclusivo dos gays cisgêneros. Mas isso se deve a uma mudança no contexto: houve uma valorização da drag por causa de RuPaul. Isso fez com que os gays cisgêneros (os donos de pink money) olhassem para as drags de uma maneira diferente. Essa mudança permitiu que até os próprios gays cisgêneros (muitos deles os próprios donos do pink money) pensassem na possibilidade de eles mesmo se montarem. Basta dar uma olhada para o movimento chamado de "New Face" que vcs verão que as drags ocupam espaços que não ocupavam no passado  (Kitnet, Sonique, etc) e que muitas dessas drags, principalmente as de São Paulo, eram gays cisgêneros que começaram a se montar. Muitas das novinhas não vieram de uma tradição drag, aquela em que existe uma mãe que ensina a filha.
Eu não sou exatamente uma Drag como as da "New face", mas foi esse movimento que me permitiu ser quem eu sou hoje. Eu também não tive uma mãe, eu aprendi a ser drag apenas observando. Eu nunca tive alguém que me ensinasse a me maquiar ou a costurar ou a dublar ou a me comportar como uma drag. Fiz muito trabalho de campo para entender minimamente dessas coisas. Hoje, com o youtube e o facebook, eu não preciso mais frequentar as casas propriamente, posso continuar observando virtualmente cada uma delas que me inspiram.

Depois daquele carnaval em Madri (tem até uma foto aí emcima - a primeira - pra mostrar como eu comecei), com o nome de Diana, eu tive a certeza de que eu queria isso para mim. Eu era uma espécie de travesti andrógena sem arte ainda.
Eu estreei como Jaqueline Furacão no ano de 2011, numa festa realizada na Unicamp. Era o Carnazebra e
era maio, por isso a comemoração. Comprei minha primeira peruca e um vestido de marinheira numa dessas lojas de fantasia. Fiz uma maquiagem até que bacana. Naquela noite, eu me diverti como nunca antes e me senti empoderada. Foi aí que a Jaque surgiu mesmo.  A minha relação com o mundo também tinha mudado. Tinha novos amigos, que me incentivaram. Um deles até começou a se montar comigo e saímos algumas vezes juntas. Na mesma época mais um grande amigo se somou: era a Karol Azalea. Ela estava começando no momento em  que eu recomeçava. Ela veio um pouco mais tímida que eu. Na verdade, aquele ano foi bastante tímido para todas nós. Mas conseguimos melhorar a aparência e começamos a frequentar os espaços em que poucas drags haviam estado.
Fiquei praticamente parada no ano de 2012, me montando eventualmente, mas sempre pesquisando. Foi um ano em que passei a observar as drags com um olhar mais profissional, comecei a sistematizar a minha drag: tanto com o figurino como com a arte. Em 2013, eu já tinha minhas características como drag delimitadas: eu decidi ser uma drag que atua em duas frentes. Uma delas é o artístico, decidi performar com o diferencial de acrescentar minha experiência com o circo. Acho que sou a única drag trapezista. A outra frente é o debatedor. Decidi que não queria estar só em boates. Eu não queria ser apreciada só pela arte, pela estética. Então decidi participar de palestras, debates, rodas de conversas, mesas-redondas, a oferecer aulas sobre gênero e sexualidade, pois isso também era constitutivo de mim. O circo sempre fez parte da minha vida, então seria impossível deixá-lo de lado, e a luta contra a discriminação por gênero (principalmente a transfobia) começava a emergir como algo fundamental em mim. Por isso eu digo que não há como delimitar o Diego e a Jaque em dois módulos desconexos.  
Tenho encontrado relativo sucesso como drag que debate. Sou convidada para muitos eventos, sobretudo universitários, e até ganhei o apelido de "drag politizadora". Mas, por outro lado, tenho encontrado resistência em me colocar no mercado. Como não venho de uma tradição drag, não tenho contatos para entrar na máfia das casas noturnas.
 Em junho de 2013 fiz uma performance utilizando do tecido acrobático numa festa na Unicamp chamada
"Festa do Babado". Considero essa a minha estreia nos palcos. Infelizmente não tenho registro desse dia. Em dezembro de 2013 também participei de um festival de circo em que interpretei uma música no trapézio.

2014 está sendo um ano muito importante, pois é um ano em que comecei a estudar o mercado e o público. Também fiz uma aliança com a minha amiga Karol.  Nós duas temos encontrado relativo sucesso pelas casas que frequentamos. Fizemos muitas amizades, inclusive com drags da "New face", que são preciosas para nós. Vamos ver o que o resto de 2014 aguarda para a gente. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Sobre a repercussão de RuPaul's Drag Race em nós

Vou tocar num assunto que adiei ao máximo, mas, como estão sempre pedindo minha opinião sobre o tema, chegou a hora de me posicionar.
Tenho uma postura muito crítica com a série do RuPaul, o RuPaul's Drag Race. Eu assisti apenas a uma temporada e não curti muito. Não tenho nada contra a pessoa do RuPaul em específico. Pelo contrário, admiro-a bastante e nem preciso dizer o porque. O programa também tem seu lado positivo: divulgou a cultura drag para a população gay (e inclusive já é bastante cobiçada pelo "pink money"), incentivou novas drags (praticamente a nova geração toda) e o mais importante, difundiu técnicas de montaria guardada há anos pelas drags mais antigas (o programa é tipo um "Mister M" das drags, rsrs).
Minha crítica, no entanto, é quanto a algumas ideias do programa em si, que, de longe, não se originou com o programa, mas encontra grande força para manter-se viva.
Em primeiro lugar, trata-se de uma competição. Fico sempre com o pé atrás com competições, mas no caso Drag é ainda mais complicado, porque estamos num campo em que o que mais importa é a diversidade. As drags são diferentes e é impossível escolher apenas uma. A competição passa desapercebida pelas pessoas, porque é uma coisa bastante naturalizada na sociedade capitalista. Existe uma tendência ao pensamento monocórdio nessa sociedade: o tempo todo estamos fazendo concursos para escolher A/O MAIS, só há espaço para UM. Isso, por sua vez, é fruto de um ESSENCIALISMO também naturalizado. O essencialismo diz que as coisas têm uma essência (única e pura) e que em sua origem elas não são diversas. Oras, isso é uma tremenda bobagem, pois há inúmeras maneiras de se ser. Mas o essencialismo está aí, vivíssimo por todo lado. Ele ressoa toda vez que dizemos/ouvimos que fulana não é uma mulher de verdade (muitas vezes, essa frase é dirigida a mulheres trans), por exemplo. No caso da série, o essencialismo gira em torno do que é ser Drag. Só a verdadeira Drag será a campeã, porque afinal ela é uma Drag Queen de verdade.
A verdadeira Drag é aquela que sabe fazer uma verdadeira maquiagem, sabe fazer enchimentos verdadeiros, sabe cantar (ops.. dublar) verdadeiramente, etc etc. Como se houvesse apenas uma maneira de se fazer todas essas coisas.
Em segundo lugar, me incomoda bastante a competitividade e a rivalidade que surge por conta desse formato. As Drags performam a feminilidade, evocam a mulher. E fica muito fácil, dentro de uma cultura machista, que mulheres sejam rivais. No fundo, a rivalidade em jogo é nada mais que a rivalidade feminina. Difundir isso é dar voz ao machismo.
E por fim, o que me incomoda também é a maneira como consumimos essa cultura americana: como já disse, acrítica, e consequentemente, colonizadamente. A gente tem muita predisposição a aceitar os enlatados e aplicar os modelos de lá para cá. Gentem, o que é "lipsync" se não a velha e boa dublagem? Já não basta a alcunha de "Drag Queen", que num movimento anterior, o de Priscila, já não substituiu o "transformismo"?
Uma vez que estamos inseridos nesse essencialismo monocórdio, cria-se a sensação de que só se é Drag Queen de verdade, se a drag for como uma das de RuPaul. Não é necessário podar a diversidade e se matar por um lugar ao pódio nessa corrida das loucas.

   

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