terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Dragão Dourado fecha suas portas: minha visão da obra


O Dragão Dourado é uma peça que retrata a exploração de chineses. Em especial, a tragicomédia conta a história de dois irmãos que cruzam o mundo em busca de vida melhor e vêm parar em algum lugar do ocidente (o autor - Roland Schmmelpfennig - é alemão, então, muito provavelmente o destino dos irmãos é em algum lugar da Europa). Com a ajuda do dinheiro dos tios, eles deixam a China. Mas nunca se reencontram do outro lado da viagem. A história do casal de irmãos, como a dos demais personagens, estão entrelaçadas e tem como eixo comum o restaurante expresso de comida chinesa, tailandesa e vietnamita, e que dá título a obra: O  Dragão Dourado.
O jovem chinês é novato no restaurante e sofre de dores de dente crônicas. Ele é apresentado ao público com os outros quatro que trabalham lá na minúscula cozinha. Já o núcleo que retrata a história da irmã recorre a uma metáfora: à fábula da cigarra e da formiga. A irmã é a cigarra que fica presa nas garras da formiga. Assim, a história do irmão é abordada de maneira mais explícita e faz uma crítica a exploração do trabalho, enquanto que a história da irmã é apresentada de maneira mais simbólica/poética e faz uma crítica à exploração sexual.
Ao longo da trama essa lógica se inverte. A cigarra deixa de ser cigarra e é representada como uma jovem que caiu na rede de prostituição. Inclusive há cenas em que a jovem é abusada sexualmente e isso da fim a sua vida. Ao passo que no enredo do irmão, o jovem começa a ter delírios por causa da dor  e sua morte é esboçada de maneira mais poética.
Embora não haja protagonistas na peça, esses dois núcleos são os fios condutores da trama. No entanto, às vezes eu tenha ficado com a impressão de que houve um desequilíbrio entre a núcleo do irmão e o da irmã. Pareceu-me que a história mais importante era a do irmão. Talvez tenha ficado com essa impressão porque o jovem oriental é apresentado de modo mais concreto e a jovem de maneira mais metafórica. Notei que muita gente não entendeu que a cigarra ou a jovem oriental era a irmã jamais encontrada. Para essa pessoas, a trama principal foi só a do jovem que morre de dor de dente em meio ao caos de uma cozinha que não pode parar.  Então, de certo modo, a história do menino chamou mais atenção e foi mais explícita que a da história da menina. A passagem de uma representação mais concreta para uma representação mais metafórica fortalece mais a história do jovem. Enquanto que o contrário, a representação mais simbólica transformada em realismo, invisibiliza mais a personagem feminina.
A crítica é tão profícua que a exploração do trabalho se dá com o homem e a exploração sexual se dá com a mulher. A história mais destacada é a do homem e não a da mulher. O monstruoso do homem - o sangue na boca - é encenado. A violência contra a mulher é apenas simbolizada, narrada. É um retrato tão real da sociedade que na história os descompassos de gênero são normalmente tomados como naturais.
Por outro lado, o que mais me chama a atenção na história e, em especial, nessa montagem é que os gêneros dos personagens e dos atores não estão sempre alinhados, ou seja, atores e atrizes representam tanto papeis de homens quanto o de mulheres. E, particularmente, essa peça conta comigo: uma drag queen. Achei um ato tremendamente político o de tratar dessas questões com naturalidade, ainda que
sob o efeito da máscara do teatro.
Tive quatro papeis na peça. De primeira, fui escalada pra fazer uma das aeromoças que mora no mesmo prédio em que funciona o restaurante. Num primeiro momento eu não gostei muito porque achei meio óbvio. Não há nada mais caricatural uma drag queen fazer o papel de uma aeromoça à la Barbie Girl - e isso no núcleo cômico
do espetáculo. Mas depois eu fui encontrando prazer em fazer essa aeromoça. Acho que dos meus personagens é o que mais cativa o público e que, de fato, é o que eu interpretei sem muitos esforços.
Também fiz uma rápida passagem pela cozinha. Todos os 15 atores interpretaram o papel de um oriental na cozinha. Essa personagem nem deu tempo muito de eu entendê-la. Mas foi uma das que eu mais me diverti pelo simples fato de que era uma cena bem coletiva e que, para ter êxito, necessitava do jogo com os colegas.  
Interpretei também a cigarra na fase glamour. Sinto que esse foi um personagem que ganhei de presente dos diretores. A atriz que faria esse papel teve que deixar o grupo e eu fui escalada pra substituir. Iríamos fazer uma dublagem, uma cigarra que dublaria uma canção. Mas em um dos ensaios o som falhou e a cena tinha que continuar, então cantei. Os diretores gostaram, gostaram da música que escolhi (Como a cigarra - composição de Maria Elena Walsh e imortalizada na voz da Mercedes Sosa) e no final foi isso. Foi a minha cena de destaque em vários sentidos. E com certeza, o primeiro deles foi a coxia. O tempo de troca de figurino era limitadíssimo. Atuava numa cena antes, em que usava um figurino completamente diferente (e isso incluía a peruca) ao da cigarra. Era uma correria danada, mas que com muita ajuda dos colegas de elenco, dava sempre certo. O segundo desafio era entrar, dançar EEE cantar. Interagir com a formiga e com a plateia foi muito divertido.
Depois da cantoria, a cigarra começa a definhar. E nessa mesma cena ela é humilhada. Mudar esses estados e implorar por comida também foi um desafio.
Mas o que eu mais gostei nessa cena é o que significou cantar pra mim. Como vcs sabem só o macho das cigarras é quem canta. Eu fiz o papel de uma cigarra fêmea. Uma cigarra fêmea que canta. Portanto, fui uma cigarra transgênera e esfreguei meu falo transgênero na cara de todo mundo ali.
E, finalmente, o quarto papel que fiz foi o de um jovem rapaz. Foi o papel mais difícil de fazer. O personagem era um jovem rapaz que acabou de descobrir da gravidez de sua namorada. Ele não aceita a situação. Depois ele ainda procura uma prostituta - a cigarra-mulher - para compensar suas frustrações. O complexo dessa cena era que eu, uma drag queen, fazia o papel de um homem, ou seja, um menino que se monta de menina fazendo o papel de um menino.
Meu objetivo era fazer o público esquecer toda aquela maquiagem exagerada no meu rosto, era esquecer o corpo feminino, esquecer o relevo dos seios e enxergar em mim um cara extremamente boçal e machista. Tentei dar bastante contraste com as demais personagens femininas que encenei.
Foi muito bom ter conhecido esse grupo - não sem os conflitos que não faço questão de evitar, tratou-se de momentos de intimidade, amizade e respeito inesperados por mim. Foi muito bom ter conhecido o teatro e a dança nessa profundidade. Foi muito bom ter conhecido nossos diretores-guias. Foi muito bom ter encontrado esse texto - que no começo achei um saco. Foi muito bom ter o retorno e o carinho do público. Sinto que a Jaque cresceu. E é com esse sentimento que O Dragão Dourado fecha suas portas. 

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