segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Da transgeneridade drag

A discussão está travada na seguinte questão: a transgeneridade está majoritariamente sendo entendida como uma metonímia. Sabe, aquela história da parte pelo todo? Existem muitas formas de se vivenciar a transgeneridade. Há muitas narrativas transgêneras. Mas só três delas estão ao nível do debate social. São justamente reconhecidas como identidades “verdadeiras” (ainda que maleporcamente) por simplesmente estarem reconhecidas no debate social. E não há sombras de dúvidas sobre a importância de estas três identidades alcançarem esta esfera do debate. As longas e históricas trajetórias de luta, opressão e conquista de direitos de travestis, mulheres e homens trans é inegável. No entanto, há mais tantas outras narrativas sobre a transgeneridade.
Entendo a experiência transgênero como toda e qualquer experiência em que a pessoa cruza as convenções do seu próprio gênero estabelecido. Uma experiência transgênero pode ser a de um homem cisgênero que se fantasia de mulher no carnaval. É também uma experiência transgênero quando você vai a uma festa temática como as “festas do contrário” (em que homens se vestem de mulheres e mulheres se vestem de homens). Em suma, uma experiência transGÊNERO é quando cruzamos a qualquer momento as fronteiras dos gêneros que nos é estabelecido.
No quesito frequência, a diferença entre uma experiência transgênero e a identidade de gênero transgênero é a quantidade de experiências transgênero vivenciadas. Quando um homem vai a uma festa de carnaval, ele apenas “se veste” de mulher. No dia seguinte, o seu gênero “homem cis” está assegurado novamente. Travestis, homens e mulheres trans cruzam esta linha permanentemente, em tal frequência que a experiência leva a toda carga que estas pessoas carregam. Mas entre a experiência única e a experiência permanente há uma gama de outras identidades.
Há pessoas que podem voltar no carnaval do ano seguinte e mais uma vez “usar roupas” do gênero oposto. Aqui eu acho interessante o funcionamento do “gênero” frente ao “vestir-se de um gênero”. Parece que através do ritual da vestimenta, homens e mulheres conseguem acessar o canal do alterego do gênero oposto. A roupagem parece funcionar como um placebo do gênero: como se a vestimenta fosse a máscara do gênero. Ou seria todo o contrário: a roupagem empodera o gênero, porque a sociedade reconhece o gênero através da roupa.
Há outras pessoas que se vestem de mulher com um pouco mais de frequência. Há pessoas que só se vestem de mulher na intimidade, como muitxs Cross-dresser, que inclusive têm a vestimenta no próprio nome, dresser.
E aqui começa a surgir a dificuldade dos limiares. O que pode ser considerado uma experiência transgênero legítima? Um homem gay cisgênero vestindo uma calcinha durante o ato sexual pode ser considerado uma experiência transgênero? Quanta roupa ele precisaria usar para poder ser considerado do outro gênero? Quantos signos de feminilidade ele precisaria mover para poder, em sua intimidade, ser uma mulher?
Transgeneridade também é um assunto para as drag queens (com exceção das “ladies queens”, drags mulheres). Há muitas drags (ou pessoas que fazem drags) que se distinguem de seu personagem feminino. Encaram duas realidades: a drag sai com um bom banho e fica guardada lá no guarda-roupa e, geralmente, o menino gay cisgênero assume o comando. A pessoa de verdade é o Joãozinho e não a Maryah Sabatella. Mas mesmo assim, mesmo nestes casos de dissociação, o Joãozinho montada de Maryah Sabatella é uma experiência transgênero.
Há outras drags que, no entanto, já são mulheres trans. Algumas inclusive, começaram como drags. O interessante é que nestes casos, a palavra “drag”, como ex-drag em oposição a nova mulher trans, funciona como um proto-gênero. Apesar disso, as pessoas no Brasil ainda têm muita dificuldade em enxergar algo de gênero na "drag", alegando que drag é pura e simplesmente "arte". Não que não seja arte. Drag é arte, mas TAMBÉM tem a ver com gênero.  
Devemos reconhecer que, para a maioria das drags, exercer a arte drag tem a ver essencialmente com a experiência transgênero. Montar-se é atravessar as fronteiras dos gêneros.
E novamente esbarramos nos limiares: o quanto de experiência transgênero necessitamos para, de fato, cruzarmos a ilusória linha dos gêneros? O quanto cada drag se permite a feminilidade? O quanto da feminilidade você leva para o Joãozinho - que está no controle -, a ponto de o Joãozinho ir-se embora de verdade? Há drags que vigiam a própria feminilidade, ainda que inconscientemente, quando desmontadas. Tratam suas próprias drags na terceira pessoa como se de uma outra pessoa se tratasse. Na real, eu acho que nossas drags são apenas projeções de nós mesmas para sermos felizes da forma que gostamos de ser. Quem faz a drag sou eu, logo a drag sou eu! Se a tenho que varrer pra debaixo do tapete por questões de trabalho, familiar ou amorosa, eu até entendo. Mas, no fundo, cada drag sabe que sempre somos nós mesmas o tempo todo.  O que muda são os olhares da sociedade. O que muda são os olhares que fazemos de nós mesmas.
Como os discursos sobre transgeneridade respeitam a uma certa hegemonia e como os discursos sobre outras transgeneridades são incipientes, as drags sequer são capazes de se reconhecerem como vivenciadoras da experiência transgênero. Mesmo dizendo que se identificam como gays cis, estes mesmos gays cis fazendo drag estão vivenciando uma experiência transgênero.
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Cá entre nós:
Vocês veem cabelo de mulher, vocês veem cara de mulher, vocês veem corpo de mulher. Mas vocês não veem uma mulher. Vocês se masturbam pensando nela. Vocês desejam o corpo dela. Até entendem a sua mulheridade (ups, feminilidade), mas não a consideram uma mulher, dessas de verdade. Mulher ou homem, existe aí na Pablllo Vitar uma experiência transgênero, destas que se transforma na pedrinha do sapato da teoria de vocês. A nossa identidade drag, enquanto identidade transgênera, é uma experiência fluida e, assumidamente, proteiforme, como toda e boa identidade. Imos e voltamos, somos homens e mulheres, ou só homens ou só mulheres. Somos nada, somos agênero, somos só uma roupagem, como vcs adoram nos lembrar. Mas uma roupagem que a cabecinha de vocês não conseguem processar. Nós vivemos na linha do meio, somos drag 24h. Montada sou drag, mas desmontada também continuo sendo a drag, só que sem a “roupa”. Continuo vivendo as questões que a drag me traz. Aliás, nós, drags, vivemos nossas questões que são particulares, como é este o caso da Pabllo Vitar. Vocês estão sendo violentos com ela, como o já foram comigo. Deem a nós o direito de não nos explicar!!! Revejam os seus privilégios binários!

   

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