sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Entrevista com Duda Alfena


Eduarda Johanna Alfena ou simplesmente Duda é uma menina aficionada pela música. Toca piano e violino desde 18 anos de idade. Atualmente tem 21 anos. Gosta muito de história. Ela também é dona de uma página no Facebook chamada "Duda, uma menina diferente", em que ela narra suas aventuras e decepções sobre ser uma menina trans com Asperger, uma síndrome do espectro autista.
Na entrevista a seguir, a pedido de Duda, mantive os substantivos em letras maiúsculas. Conheçam de perto essa garota extraordinária. 


Jaqueline Furacão -  Você poderia  falar um pouco sobre a síndrome de Asperger para o público leigo?

Duda - Com certeza, estou aqui pra esclarecer ao Máximo. Autismo, é um amplo Espectro de Condições, não falo mais ‘Doença’.
Asperger é a Condição mais leve de todo o Espectro. Normalmente pessoas Aspergers (Aspie, pra quem não fala Alemão) tem QI elevado. Nossos interesses são extremamente reclusos. Gostamos das mesmas coisas, ouvimos as mesmas Músicas, comemos as mesmas coisas. Temos praticamente a mesma Rotina. Hoje em Dia eu já ouço outros estilos, mas, continuo muito reclusa com Comida. Nos Dias que passei na UNICAMP, entre 27 e 29 de Junho do Ano passado, tive oportunidade de almoçar no ‘’Bandejão’’. Só comi Arroz, Rs. Aos poucos vou experimentando mais coisas, mas, são pequenos avanços.
Além de tudo isso, não olhamos nos Olhos. Fora, que somos muito Ansiosxs, isso acaba nos causando certos problemas na Dicção.
Porém, essa reclusão em interesses, nos torna excelentes Profissionais. Pois, só fazemos, falamos, lemos, aquilo que gostamos. Aspergers famosxs posso citar: Albert Einstein, Lionel Messi, Daryl Hannah, e Hans Asperger (o Médico Psiquiatra-Pediatra que descobriu a Síndrome de Asperger).

Jaqueline Furacão -  Duda, por vc ser trans e Asperger o estado exerce um controle em dobro sobre o seu corpo. Conte um pouco pra gente sobre essas "aventuras" médicas.

Duda - Bom, não posso citar Nomes. As Pessoas Cis, na forma dos Protocolos Médicos, exercem total controle sobre nossos Corpos e Identidades. Cabe a elas dizer se somos ou não Trans*. Fora o fato que elas excluem Pessoas desses atendimentos.
Para poder ingressar em algum Ambulatório, tem que fazer uma Triagem. Responder perguntas sobre a sua Vida. Se lá, elxs acharem que você ‘’pode’’ ser Trans*, você ingressa.
Pessoas que tenham alguma ‘’Doença Mental’’ não podem ingressar. No meu caso, a desculpa é que a Transexualidade seria uma Fuga para o Autismo. O que acho que o chefe do Ambulatório onde sou atendida está tentando fazer, creio, ser provar que exercer a Identidade e adequar o Corpo traz melhorias ao Autismo, o que de fato acontece. Eu tenho Disforia Genital, necessitando da Cirurgia de Transgenitalização.  

Jaqueline Furacão -  Suas duas paixões são a história e a música. Vc pensa em seguir carreira em alguma delas? Quais são suas dificuldades para aceder ao ensino superior?

Duda - Com toda certeza. Quero ser Historiadora e Regente. Aliás, faço questão que minha Pós-Graduação seja em Musicologia: o Estudo Histórico, Filosófico e Sócio Antropológico da Música Erudita. Conciliar como as Mudanças Histórico políticas interferiram na Vida e Obra dos Grandes Compositores, é simplesmente excitante para mim.
Eu pretendo ingressar esse Ano em algum Curso, para prestar o Vestibular. Eu tenho extrema dificuldade com Exatas. Por causa do Asperger, aquilo que não nos interessamos, simplesmente passa batido. A maior dificuldade será com a Matemática, Física e Química.

Jaqueline Furacão -   Na sua página, "Duda, uma menina diferente", vc escreve uma série de reflexões muito interessantes. O processo de escrita é catártico pra vc? Fale sobre sua relação com a escrita.

Duda - É emocionante sim. Fiz uma Página que não deu certo. O que me deixou muito frustrada. Foi no início de Junho do Ano passado. Em Julho, chegou a data do meu Aniversário de Transição, o Dia em que me assumi Trans*. Uma grande Amiga, que fui visitar em Campinas, fez um Texto em homenagem à esse Dia. Isso me deixou com vontade de falar mais de mim. Eu abri a Página atual, e o meu Primeiro Texto teve 1700 visualizações. O que me deixou com muito Gás.
A Página tem me ajudado a me descobrir, pois, para fazer os Textos, tenho que mergulhar em memórias nem sempre alegres. O que me faz lembrar e contestar como eu me senti. Fora que me passa a impressão de, nem que seja um pouco, estar esclarecendo as coisas. Fora o fato de ter conhecido Gente tão legal através dela.
Nunca tive uma grande Relação com a Escrita. Nunca fui de Escrever. A Página me surpreendeu nisso. Essa minha Amiga revisa os Textos pra mim. E eu sinto que a minha Escrita melhorou muito depois desses Textos. Uma Pessoa que revisa Redações, para o Processo seletivo de uma Empresa, diz que eu venceria muito fácil 90% das Redações. Muitxs elogiam que escrevo com Sinceridade e Empatia. Quero escrever muitos Livros de Música e História.

Jaqueline Furacão -  Por que o dia da visibilidade trans é importante?

Duda - Não só o Dia, mas a Semana, o Mês, o Ano e o Século. Visibilidade é o que nos falta. A População Trans* é oprimida inclusive por outras partes da Própria Sigla LGBT. Temos que quebrar essa Transfobia nossa de cada Dia. Temos que nos fazer ouvir e lutar pelos nossos Direitos. Direitos que não caíram do Céu, como nada cai. Temos que juntxs, fazer com que exista a nossa Visibilidade. Fazer com que sejamos ouvidxs, vistxs e respeitadxs. Façamos cada Dia um Dia da Visibilidade Trans*, assim como a Visibilidade de todas as Classes oprimidas. 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Entrevista com Bia Bagagli

E na entrevista de hoje, em homenagem ao dia da visibilidade trans*, vamos falar com Beatriz Bagagli, mais conhecida como Bia. Ela é estudante de Letras e pesquisa na área de Análise do Discurso. É uma militante do transfeminismo e co-administradora do mesmo grupo no Facebook. Pra quem não sabe, a Bia é minha amiga de longa data e a gente mora juntas há quase 2 anos. Hoje vcs vão saber um pouco mais dessa menina espetacular.

Jaqueline Furacão -  Bia, vc foi a primeira a pedir o uso do nome social na Unicamp, conta pra gente como foi esse processo?

Bia - Demorou um pouco, já que ninguém tinha pedido antes o uso do nome social na Unicamp inteira (isso mostra como pessoas trans* estão longe desses espaços). Acho interessante apontar como as pessoas estão despreparadas com essa demanda. Boa parte das pessoas (incluindo as que lidam diretamente com a burocracia) nem ao menos sabe o que é nome social. Então é um eterno estado de ter que se “explicar”, explicar que sou (e o que é) uma pessoa trans*. Isso é desgastante, mas estou acostumada relativamente. Vale a pena ressaltar que o respeito ao nome social não se deu por um respeito às identidades de forma abstrata e descompromissada, a Unicamp só acatou porque foi obrigada pelo decreto estadual nº 55.588, que determina não apenas o uso do nome social, mas também estipula pena pelo descumprimento do uso, de acordo com a lei 10.948. Ou seja, nem ao menos basta ter normas baseadas na “boa civilidade”, é preciso falar em punições institucionais. Também tenho que dizer que podemos acreditar um pouco nas pessoas: a ouvidoria (órgão que definitivamente conseguiu me ouvir e encaminhar concretamente a demanda) foi atenciosa e prestativa comigo, assim como o diretor acadêmico.  Depois desse precedente, qualquer pessoa pôde solicitar, através de um formulário no site da DAC, sem a exigência de nenhuma “prova”, o uso do nome social na Unicamp. Por fim, importante falar que política de nome social é uma medida paliativa e precária: precisamos do reconhecimento de nossos nomes nos documentos oficiais, assim como a aprovação de uma lei (como o projeto de lei João Nery) que determine isso.

Jaqueline Furacão - Vc está lutando para conseguir alterar seus documentos na justiça também. Fale um pouco das dificuldades encontradas.

Bia - São várias, mas tenho que reconhecer meus inúmeros privilégios neste caso. Primeiro existe a dificuldade de acessar cidadania que é comum a todas as pessoas trans*. O modelo de “cidadania” nesta sociedade para pessoas trans* é precário e autorizativo, ou seja, irá depender de quantas “provas” cissexistas eu conseguir juntar, como laudos médicos e psicológicos e, em última instância, da boa vontade do juiz (já que é necessário entrar com um processo judicial). Mas é então que meus privilégios de classe, raça, passabilidade cis e aceitação dos meus pais entram em jogo. Eu tive o privilégio de contratar um advogado particular e me consultar com um psiquiatra particular para conseguir o maldito laudo. Certamente é uma minoria de pessoas trans* que conseguiria essas mesmas coisas, mostrando como diversas formas de opressão se interseccionam com a transfobia.

Jaqueline Furacão - A academia é bastante cissexista. O que você teria para falar sobre as pesquisas feitas sobre pessoas transgêneras?

Bia - Sim, de fato. Primeiro é só dar uma olhada pra quem compõe os espaços acadêmicos. Depois, observar quais são os sujeitos que estudam a transgeneridade. Iremos concluir que pessoas cis historicamente são as que estudam as pessoas trans* e pessoas trans* raramente são sujeitos do próprio discurso. Essa dinâmica vai consolidar uma estrutura na qual uma imagem se reproduz: a pessoa cisgênera enquanto pesquisadora-antropóloga e a pessoa trans* enquanto “povo distante” que irá fornecer dados para x pesquisadorx. Não quero dizer com isso que todas as pessoas cis pesquisadoras sobre transgeneridade são colonizadoras ou cissexistas. Pelo contrário, temos vários nomes como Berenice Bento, Larissa Pelúcio e Jorge Leite Júnior que são pessoas cis que produzem conhecimento que denuncia as relações transfóbicas. No entanto, é necessário mais, é necessário também que tenhamos grandes nomes de pessoas trans* enquanto autorxs. Acredito que isso está surgindo, aos poucos, agora. Também, pelo que ando percebendo, é necessário que um transfeminismo feito por pessoas trans* “invada” a academia e isso irá significar no uso do conceito analítico “cisgênero”. Pode parecer exagero, mas o uso desse termo vai fazer uma espécie de recorte epistemológico, marcando um “antes” e “depois”. E vejo o uso de cisgênero como uma forma necessária de resistência feita pelas pessoas trans*, tanto é que os autores cisgêneros que estudam transgeneridade (incluindo os citados acima) não chegam a usá-lo.

Jaqueline Furacão - Como é para você ser amiga e dividir casa com a Jaqueline Furacão? Conte pro pessoal sobre a nossa relação de amizade.

Bia - É uma delícia conviver com a Jaque! Me sinto privilegiada por conseguir morar, depois que sai de casa dos meus pais para estudar na Unicamp, em uma casa na qual eu pude desenvolver uma relação que vá muito além das necessidades básicas de um mero alojamento. É ter, literalmente, uma segunda família. E isso foi especialmente importante pra mim, em um momento delicado e fragilizado em que eu estava vivendo, esse momento em que sentia a abjeção na pele por estar transicionando. Por isso morar com a Jaque foi fundamental para mim, para ter um espaço seguro recheado de discussões, as mais variadas e ricas possíveis, e de amizade.

[Comentário da Jaque: <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3]

Jaqueline Furacão - Por que o dia da visibilidade trans é importante?


Bia - É importante pra população cisgênera saber dos seres abjetos que eles mesmos, através dos mais sutis até os mais violentos dispositivos, marginalizaram. E denunciar esses dispositivos, que se mostram como se fossem inexistentes. Mas não apenas isso, também é uma via de mão dupla: é pra pessoas cis saberem que são cis. Estou cada dia mais afeita a pensar a visibilidade trans* enquanto visibilidade cisgênera. Isso porque o termo cisgênero torna possível diversos deslocamentos de sentidos. Afinal de contas, só iremos saber quem são as pessoas trans* se soubermos quem são as pessoas cisgêneras. Estaremos deslocando a forma de ver as pessoas cis quando as designamos como cis ao invés de outros termos naturalizantes e biologizantes. É através do reconhecimento da alteridade do outro que vamos conseguir tornar as pessoas trans* humanas, e o uso do termo cisgênero me parece essencial nesse sentido.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Entrevista com Daniela Andrade

Em virtude do dia da Visibilidade Trans*, vou fazer uma série de entrevistas com notadas mulheres Trans*, a começar pela Daniela Andrade.

Daniela Andrade é um dos nomes mais conhecidos no ativismo transgênero, principalmente na internet. Ela tem 33 anos, mora em São Paulo e vive com seus gatinhos Seu Arlindo e Julinho da Adelaide.
É formada em Letras e Análise de Sistemas, com pós graduação nas duas áreas. Quinze anos de experiência com análise e programação de sistemas, e com atuação também em sala de aula, ministrando as disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura para alunos carentes em cursinho e pré-vestibular, e é considerada uma mulher bem sucedida.
A breve entrevista de hoje vai revelar algumas curiosidades sobre essa pessoa maravilhosa.


Jaqueline Furacão - Daniela, suas reflexões são admiradas por muitas pessoas, parece que vc consegue dizer o que tá entalado na garganta de muita gente.  A que se deve esse seu talento da comunicação? Como vc consegue escrever tantos textos?

Daniela Andrade - Sempre gostei de escrever, como nunca tive amigos durante a infância e adolescência, transformei os livros em meus amigos, transformei as personagens e histórias que eu criava e punha no papel em grandes companheiras. Data daí esse meu apreço pela língua escrita, numa tentativa premente de traduzir o indizível. Tenho ansiedade em colocar para o mundo o que é ser trans*, sob a perspectiva de uma pessoa trans* o que ainda hoje em dia, infelizmente, é algo raro.

Jaqueline Furacão - A gente sabe que vc teve muita dificuldade na sua adolescência, mas hoje vc tem dois diplomas, já trabalhou em diversos lugares. Vc acha que conseguiu dar a volta por cima dos problemas do passado? Seus problemas hoje são outros? Conte pra gente como é não ter privilégios cisgêneros.

Daniela Andrade - Não acredito que os problemas do passado simplesmente sejam extintos, não consigo olhar para o meu passado sem dor, há marcas e cicatrizes que são eternas. Os problemas permanecem os mesmos: a falta de vontade das pessoas em respeitar uma mulher trans* como qualquer outra mulher, o enorme preconceito, a ignorância, a transfobia. São inimigos diários de ontem e de hoje.

Não ser uma pessoa cis é ser considerada diuturnamente como aberração, ser colocada à margem da sociedade, ter direitos muito básicos negados, como não ter seu nome e seu gênero respeitado por quase ninguém. Não ser uma pessoa cis é para o mundo ter falhado, mas eu sempre digo: não tem problema, o mundo também falhou para mim, estamos quites.

Jaqueline Furacão - E o coração? Tem dono?

Daniela Andrade - Sim, namoro há mais de um ano um rapaz que é o grande amor da minha vida, que me compreende, e me ajuda de todas as maneiras. Ele e meus dois gatos são a minha família.

Jaqueline Furacão - Recentemente vc conseguiu mudar sua documentação,  conte pra gente como tem sido essa experiência.

Daniela Andrade - Foi algo extremamente estafante emocionalmente, pois você fica impaciente, fica apreensiva, tendo seu destino nas mãos de terceiros. Sabendo que um outro que não te conhecer irá te dar ou não o direito de ser cidadã, de ser reconhecida como Daniela e mulher perante as leis brasileiras – e isso é um absurdo, ter que judicializar direitos tão básicos. Fora o fato de que durante o processo, exigências esdrúxulas foram exigidas, como comprovação da minha aparência feminina. Como somos nós, pessoas trans*, que estamos sob constante escrutínio alheio, de pessoas cis que detém o poder de nos conceder ou não o direito de sermos consideradas cidadãs e cidadãos, percebe-se que as exigências feitas para que se comprove a nossa identidade não é feita para pessoas cis, essas tomadas como sujeitos de direito.

Jaqueline Furacão -  Por que um dia de visibilidade trans* é importante?


Daniela Andrade - O dia da visibilidade trans* é importante para lembrar que pessoas trans* sofrem 12 meses, 365 dias por ano a transfobia e o cissexismo. Que essas pessoas estão marginalizadas, alijadas dos bancos das escolas e universidades, preteridas no mercado de trabalho, sendo forçadas a se prostituírem, tendo o gênero deslegitimado diuturnamente, sendo agredidas por uma sociedade que não nos considera gente, que não vê humanidade em nós. O dia da visibilidade trans* serve para que as pessoas se conscientizem que não podem e não devem lembrar da nossa existência apenas no dia 29 de janeiro.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

29 de janeiro, Dia da visibilidade Trans

Amanhã, 29 de janeiro, é o dia da visibilidade trans*. Para comemorar essa data tão importante para a luta por direitos, a parir de amanhã, convido um grupo de mulheres trans para falar um pouco mais de si. São pessoas de nomes reconhecidos dentro do ativismo. A cada dia uma entrevista nova.  

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Sobre a performance de Macklemore & Ryan Lewis, Mary Lambert & Madonna no Grammy




Tive um misto de sentimentos assistindo à performance de Macklemore e Ryan Lewis, Mary Lambert e Madonna na premiação do Grammy desse ano. Veja aqui.
Peguei o link e comecei a assistir ao vivo e, sinceramente, eu não consegui entrar no clima. Logo, não achei nada demais. Demorou demais para passar, já estava muito cansada. Achei uma enrolação até chegar no ponto.
Mas, depois, vendo com mais calma. Fora do contexto da premiação, eu até que me emocionei e deu pra enxugar aquela lágrima solitária escorrendo aqui no rosto.
A minha crítica também é dupla. E eu vou começar pela parte boa.
Acho super importante que se retrate o casamento igualitário, é uma das luta da comunidade LGBT (diria que é uma luta mais dos LGBs, o T é outra conversa). Mesmo que eu não goste muito de casamento, acho isso uma coisa muito heteronormativa, penso que é importante essa briga porque ela diz respeito a uma luta por direitos igualitários. Tirando o foco do casamento, é bacana empoderar os que não gozam de direitos plenos. E em se tratando especialmente dessa época, em que há tanta violência cotidiana dispensada a jovens homossexuais (é claro que a violência contra trans* é muito mais frequente e muito menos debatida dado o seu silenciamento), é muito importante que se traga a questão ao grande público. Trata-se de um dos eventos mais importantes do mundo da música e de personalidades muito prestigiadas, então, estrategicamente é uma forma de dar visibilidade para a luta.
Mas, por outro lado, acho ruim porque os homossexuais acabam reforçando a lógica binária, já que se baseia num matrimônio heterossexual; reforça também a ideia de "amor romântico", que pode ser uma coisa bastante opressora; reforça a ideia de família tradicional, pois está à margem dessa lógica e não contra ela; e, sobretudo, é uma maneira que não dá protagonismo aos oprimidos. Por mim tudo bem se vc queira se casar nos moldes tradicionais, lutamos para isso também, e acho que, por isso, me emocionei mais tarde. O que é ruim é que a coisa sempre parte deles para nós, parte dos "normais" para os "diferentes", parte da "maioria" para "minoria". Tem um tom meio que patriarcal, em que é preciso que sejamos inteligíveis para eles, para que eles possam nos conceder o favor do casamento.
Nesse sentido, já migrando de opinião, achei que, de certa forma, a performance foi tokenista. O tokenismo é quando a gente pega algum membro ou um grupo oprimido como exemplo para dizer como somos legais, como somos inclusivas (sem ser, de fato). Vem da palavra inglesa "token", que significa "exemplar, emblema, símbolo".No linkda Wiki em inglês, eles dão o exemplo do que acontece em algumas empresas que contratam mulheres e negros. Muitas vezes, elas apenas contratam mulheres ou negros para dizer como a empresa é inclusiva, quando, na verdade, o salário de mulheres ainda continua menor que de  homens e de negros mais baixos que de brancos.
Na performance do Grammy, vejo isso acontecendo: "olha que bacana, a gente falando de LGBT em pleno Grammy". Aqui, não estou criticando a Madonna em si, mas o Grammy como um todo. Sabemos que Madonna tem uma longa relação com a comunidade gay, principalmente. Mas nunca ouvi falar que a produção do Grammy tenha algum trabalho de bastidor com essa comunidade. A gente não quer só aparecer na televisão, arrumadinho, limpinho e ser aceito pelas maiorias, a gente quer protagonismo. Só isso.
Então, olhando nem tão de perto e nem tão de longe, fico meio ressabiada de ver só elogios à performance. Mesmo que amemos a Madonna, é preciso deixar a paixão de lado, para perceber que nem tudo são flores.
Um beijo da Jaque

Ser drag queen é um ato político

Quando RuPaul diz que ser drag queen é um ato político, eu interpreto isso de maneiras muito particulares. 
Em primeiro lugar, ser drag queen é contestar a lógica binária de gênero. Essa lógica diz que os seres humanos têm duas opções bem estritas de expressar o seu gênero e também a sua sexualidade. Segundo essa lógica, uma pessoa só pode ser homem ou mulher, ser masculino ou feminino, além disso, é preciso ter todas essas coisas alinhadas. A drag queen extrapola escancaradamente esses limites binários.
Sem querer definir o que é uma drag queen (ou tentar ditar regras), posso dizer que toda drag queen, por mais binária que seja, mesmo sem querer, contraria normas.
Em segundo lugar, eu entendo uma drag, e esta é a minha narrativa, como tendo o seu foco principal no papel de gênero. Independentemente da identidade de gênero (isto é, se vc se identifica como homem, mulher, etc) e da orientação sexual (isto é, se vc se identifica como homossexual, bissexual, etc...), a drag queen performa o feminino. Trata-se de performar o feminino de maneira consciente. A drag escolhe tudo o que há no pré-construído do que é feminino: a roupa, a peruca, a maquiagem. Há vários estilos de drag, desde aquela que busca se transformar numa menina cisgênera passável até as que são mais espalhafatosas. Não devemos esquecer também das andróginas, até elas se preocupam em performar o feminino de certa forma.
A palavra chave para uma drag queen é TRANSFORMAÇÃO. O que caracteriza uma drag queen é o fato de ela viver um ESTADO feminino, por isso, o papel de gênero que ela exerce, enquanto drag queen, é o feminino. A identidade de gênero de uma drag queen enquanto montada é o de mulher, para que as se identificam assim, ou de andrógena, ou não-binária, mas nunca o de homem. Às vezes calha de a drag queen ser uma mulher transgênera. Nesses casos, ela não deixa de ser mulher quando se desmonta (embora ela possa oscilar na feminilidade). No fundo, a drag queen exerce um papel de gênero por um tempo micro, enquanto as mulheres exercem esse papel o tempo todo. Exercer um papel de gênero momentâneo é um ato político.
O terceiro ponto a se notar é o artístico. As drag queens têm um vínculo indissociável com a arte, seja pelo simples fato da transformação em si, que já é uma arte, seja pelo caráter de suas performances. Notem que nem todas as drag queens performam, mas isso não as diminui como artistas. Fazer e proporcionar a arte também é um ato político declarado.
Ser drag queen, realmente, é um ato político, mas isso não quer dizer que todas as drag queens sejam politizadas.
A maneira como drag queens se transformam e como exercem a sua arte importam muito. Muitas se baseiam apenas nos estereótipos de gênero feminino vendido pela mídia e pelo mercado, não que isso seja errado. Mas é preciso cautela. Drag queens tendem a glamourizar as mulheres. Eu acho que mulheres, aquelas que queiram, devem ser glamourizadas, só é preciso tomar cuidado para não silenciar as opressões que elas sofrem. Ser mulher não é só glamour. É preciso também cautela com o consumo sem consciência: muitas pagam o que for necessário para ter as melhores perucas, a mais variada gama de figurinos e maquiagem. Ok! Mas consumindo por consumir o ato político de ser drag fica esvaziado. Que tal pensar em formas alternativas e, sobretudo, criativas, mais econômicas de se montar? Não tenha medo de ficar imperfeita, a perfeição também é um construto vendido pela mídia.
Sempre vejo uma drag falar mal da outra: _Olha como fulana está mal montada, mal maquiada, ela tem que aprender a esfumar direito esse olho!! Não, ela não tem que aprender nada. Quem tem que aprender é você a respeitar a individualidade de cada drag. Quando a gente faz isso, estamos performando também a rivalidade feminina que é um produto do machismo. Cuidado, meninas, vocês podem estar sendo machistas, logo, opressoras, sem perceber.
Então, posto isso, quando vamos a um shopping, devemos usar o banheiro feminino? Devemos usar roupas vulgares? De que maneira queremos que um ato seja político: respeitando as normas vigentes e sendo limpinhas e arrumadinhas para servir de animais exóticos de zoológicos? Devemos ser as palhaças da classe-média? Devemos só entreter os donos do pink money?
Acho que enquanto estiver montada e estiver performando uma identidade feminina, o banheiro deveria ser o feminino. Na verdade, é uma questão mais profunda, porque nem divisão entre banheiros deveria existir, mas para isso o machismo também não. Se vc usar o banheiro feminino, seu ato vai deixar de ser político? Ou o contrário?
É preciso criar uma regra de boa conduta para sair às ruas? Não se pode vestir vulgarmente?
Quem foi que disse que é preciso ser sempre higienizada para ser respeitada? Vestir-se de forma vulgar também pode ser um ato político: o de educar as pessoas para as diferenças.
Ao criar regras sobre o que se pode e o que não se pode estamos fazendo como os coxinhas das "revoluções" de julho que entoavam o hino nacional no seu ufanismo tosco e berravam, enquanto arrotavam seu leite com pera, o eco de "sem violência". Me desculpem pelas palavras, mas sem "violência" (não a física propriamente, pode ser a gráfica, a verbal, etc..) não há mudança, sem mudança não há conquista.

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