quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O que ser drag tem a ver com gênero?



1) O que ser drag tem a ver com gênero?
Essa pergunta é um tanto quanto delicada para mim, pois acredito que o universo que hoje chamamos como “drag queen” vai além de uma arte. Não nego de jeito nenhum que o fazer drag tenha uma relação estreita com a arte, mas também não posso negar que se trata de um fazer que tem a ver com o gênero. A drag, diferentemente do clown ou de um simples personagem, traz consigo uma questão de gênero mais profunda que não está presente nas profissões artísticas puramente. É um tipo de experiência que está relacionada com o gênero e que contempla tanto pessoas cis quanto pessoas trans.
No discurso mainstream sobre o que é ser uma drag, entende-se que um homem gay cisgênero “se monta” para fins artísticos transformando-se numa figura feminina. O que há de incompleto com essa ideia na minha opinião caminha em dois sentidos. O primeiro é que não são apenas homens cisgêneros que “se montam”, mulheres trans e cis também podem se montar. E em segundo lugar, eu questiono a cisgeneridade dos homens gays cis que se montam.
A drag queen afeta todo aquele que pratica essa expressão de gênero. E não há cisgeneridade que passe incólume aos seus efeitos. É claro que cada pessoa lida com isso de maneira diferente. Temos algumas amigas drags que levam vida dupla. Separam muito bem os limites de seu “personagem” (eu diria persona) e seu “eu verdadeiro”. De dia são rapazes que trabalham em um emprego formal e à noite são as gatas que querem ser. Para mim, essa é uma experiência de gênero muito parecida com a de Cross-Dresser, que na maioria dos casos também levam vidas duplas, com a diferença de que talvez a identidade feminina não seja tão pública quanto a de uma drag.
Por outro lado, como é o meu caso, não separo mais onde termina Jaqueline Ramirez e onde começa “o menino”. Minha vida é ser drag 24horas por dia. Não sou drag apenas quando estou montada. Sou drag também desmontada. E o fato de ser drag faz com que eu tenha minhas demandas e as minhas especificidades. Demandas de que necessito quando estou montada, mas também demandas de que necessito quando estou desmontada. Um exemplo disso, é a solidão amorosa, aquela muito bem descrita para as mulheres negras e as travestis. Essa solidão frequentemente assola a vida da drag. Já ouvi “n” relatos de drags que são preteridas por serem drags. E podemos te dar em detalhe mais uma porção das nossas questões, mas por ora queremos nos ater aos limiares da drag com a arte.Tanto é assim, que existem discursos aferrados que negam a continuidade da drag quando se está desmontada. Estes discursos que lutam por separar uma coisa da outra, no fundo, tem relação com a solidão que sofremos. É um pedido de socorro: ME NAMORE, NÂO QUERO FICAR SÓ... MINHA DRAG É SÓ UM PERSONAGEM



Existem muitos casos de pessoas que se montam, mas não tem a finalidade artística. Temos muitas amigas que se montam para dar simplesmente um rolezinho na balada, e o fato dessa pessoa se montar representa, em muitos casos, um alívio na sua expressão de gênero. Montar-se pode ser uma experiência libertadora, pois é uma brecha possível para essa expressão. Sabemos que a sociedade vigia os nossos corpos o tempo todo e o corpo trans é excessivamente vigiado. O fato de você fazer drag é uma brecha, é uma permissão – que antes era dada somente no carnaval – que tem passado a ser cada dia mais aberta para as pessoas vivenciarem a cruzada no gênero, pois depois, vc chega em casa, guarda o figurino no armário, toma um banho e toda aquela coisa feminina pode esvair-se pelo ralo.
Drag queen é uma porta de entrada para a EXPERIÊNCIA transgênero. O que defendo é que à medida que essa experiência passa a se tornar mais frequente, ela vai modificando a sua expressão de gênero de modo que você passa a desnaturalizar o seu gênero dado.
Antes de responder definitivamente a pergunta inicial ainda cabem algumas palavras sobre o que entendo das identidades trans. A palavra “trans” é dada como bastante óbvia nas publicações de internet e nos círculos ativistas. Mas, na realidade, ela não é uma palavra óbvia.
Trans” é muitas vezes usada como uma abreviação de “transgênero”. Transgênero é um termo de ampla cobertura que faz oposição ao termo “cisgênero”. Todo mundo na militância atual brasileira fala de boca cheia essas duas palavras: “Cis” e “trans”. Mas muitas vezes esquecemos do “gênero”, o qual elas qualificam. Cis é manter-se alinhado à ordem compulsória do gênero instituído no nascimento a partir da genitália e “trans” é uma subversão a essa ordem.
Existem muitas formas de expressarmos a transgeneridade e esses recortes da transgeneridade têm a ver com a realidade política e social do entorno em questão. No Brasil, são duas as formas canônicas que as pessoas entendem a transgeneridade: a travestilidade e a transexualidade. Mas a transgeneridade pode se dar TAMBÉM de uma maneira diferente dessas duas. Há muitas outras formas de experienciarmos o cruzamento dos gêneros. E a minha forma de experimentar isso é fazendo drag, uma experiência de fronteira entre os mundos trans e cis.
Muitas vezes, as pessoas querem invalidar meu discurso dizendo que não sou uma pessoa trans de verdade. Primeiro que essas pessoas entendem a palavra “trans” apenas como sinônimo de “travestilidade e transexualidade”. E, de fato, não sou nem mulher transexual e tampouco travesti. Seria desonesto afirmar isto pois tenho acesso a privilégios que as travestis, por exemplo, não têm. Mas sou outro tipo de pessoa trans, diferente desses dois outros tipos. Segundo, não posso negar também que – quando estou desmontada - tenho alguns meios privilégios cis, que são negados a travestis e transexuais. Mas o fato de ter acesso a esses privilégios não apaga todo o resto. Esse acesso é só metade (talvez menos) do que sou, a outra metade é fluidez. E o simples fato de ser uma pessoa fluida aguça a ira e o ódio de todo mundo: de pessoas cis, que me vigiam por não me comportar na norma, e de pessoas trans, por não sofrer de algumas mazelas que elas sofrem.


2) Muitas pessoas fazem questão de separar totalmente a vivência drag da vivência trans. Você acha que tem muita travesti e mulher trans fazendo esse trabalho de drag?

Quanto à questão artística de pessoas trans no Brasil, esses grupos identitários sempre andaram lado a lado.
Eu costumo dividir a cultura drag em dois momentos, um antes e um depois do seriado RuPaul’s Drag Race. O paradigma atual é muito influenciado pela cultura drag americana, que se tornou popular no Brasil por meio deste seriado. Nos EUA a cultura drag é bem diferente da do Brasil, lá há muitas drags fazendo isso profissionalmente. Aqui, mal sobrevivemos como artista, eu acho que não enchem os dedos das mãos o número de drags brasileiras que conseguem sobreviver de drag. E isso faz toda a diferença. Lá, a discussão sobre cultura drag, sobre a questão de gênero no fazer drag já está posta há algum tempo. Aqui ainda estamos engatinhando, pois o fazer drag ainda é marginalizado. Aos poucos estamos driblando isso.
Com isso, não quero dizer que a cultura americana é melhor. Não se trata de uma questão de melhores ou piores, mas de tempo de prática e reflexão da cultura drag.
No Brasil, o que existia antigamente era a existência de duas classes: as transformistas e as travestis artistas. E desde aí, nós fizemos questão de estabelecer as diferenças entre uma coisa e a outra, embora se tratasse de um resultado bastante semelhante: artistas trans performando num palco. Transformistas como Éric Barreto ou Lorna Washington eram muito diferentes de Marcinha do Corinto, embora todas essas pessoas subissem no palco para entreter. Sempre existiu essa diferença: “não, eu não sou travesti, eu sou transformista, sou um homem de dia”. Ou: “eu não sou transformista, sou travesti, tenho silicone e tomo hormônio, e sou assim 24 horas por dia”.
De lá pra cá, muita coisa mudou. O nome transformista foi deixando de ser usado e o termo “drag queen” foi se tornando mais comum, e se consolidou de vez na década de 1990 depois do sucesso do filme “Priscilla, a rainha do deserto”. Na década de 1990 tivemos um primeiro boom “drag” no Brasil. No fundo, a palavra “drag queen” já existia, mas ela era usada para designar uma das tantas linhas do transformismo. A drag era aquela que exagerava na maquiagem e no figurino. Hoje, de uma maneira bem simplista, podemos dizer que “transformista” tornou-se uma linha de drag. E drag acabou se transformando no fazer artístico que tem a ver com a “montação”. A palavra drag meio que sublimou essa dicotomia do passado que existia entre transformistas e travestis artistas. Mas sublimou em partes, porque até hoje existe esse pensamento de que “drag” é uma coisa e “pessoa trans fazendo drag” é outra.
Mas, por outro lado, entendendo a drag como o fazer artístico que tem a ver com a “montação”, devemos assumir que não só travestis e mulheres trans podem ser drags como também as mulheres/homens cis o podem. Em suma, todo mundo pode ser drag. Daí a questão de gênero - que já era peculiar quando falávamos de homens gays cis – agora se torna ainda mais interessante quando falamos da universalidade do fazer drag.
Mulheres cis têm uma experiência transgênera fazendo drag? Talvez não, mas elas têm uma experiência de gênero que tem a ver com a feminilidade. Resta saber o que a drag lhes proporciona nesta feminilidade que extrapola o que a cisgeneridade já lhes oferece.
Homens cis héteros ou gays: qual o poder da experiência drag na realidade subjetiva de seus gêneros?
Mulheres trans: há muitos casos em que o fazer drag se torna a porta de entrada para a travestilidade/transexualidade. Há muitos casos de pessoas que começaram a fazer drag em algum momento da vida e mais adiante elas se tornaram travestis/transexuais.

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