quinta-feira, 1 de maio de 2014

Aniversário de Jaqueline Furacão

No mês de maio faço aniversário como Drag Queen.
Não sei precisar ao certo quando tudo começou. Talvez eu devesse dizer que tudo começou com uma brincadeira, mas não foi bem assim. Essas mudanças são paulatinas e talvez já estivesse traçada desde o momento em que decidi perceber que as categorias não são tão estanques. Assim, ser Drag pra mim não é ser apenas um personagem. Hoje posso dizer que a montaria afeta à todo momento o meu não-personagem. A performance que achava ser consciente, digamos que hoje já não é tão voluntária assim. Chego a essa conclusão porque às vezes me pego opinando em ambos estados. Às vezes não sei se devo postar uma opinião no meu perfil do face como Jaque ou como Diego. Mas é claro que a postura num perfil midiático é sempre controlada e noto que a única diferença é a maneira desse controle: como Diego não me esquivo da imagem de bom linguista, de gay crítico, etc, como Jaque a de Drag ativista.
Mas sobre essa psicologia da sexualidade, quero deixar para um outro post. Hoje mesmo quero fazer um exercício de memória sobre a minha trajetória como Jaque.
Lembro de há muito tempo atrás ter vestido a roupa de uma menina que morava comigo à época. Eu tinha o cabelo longo até metade das costas. Achei aquela experiência fabulosa. Alguns meses mais adiante repeti a façanha na casa de uma das minhas melhores amigas. Ela era exatamente do meu tamanho e me emprestou toda a indumentária. Nesse dia, eu apenas fui atender a porta. Tínhamos pedido comida por telefone e recebi o entregador montada. Achei incrível que eu pudesse fazer isso.
Essas foram as minhas experiências conscientes que tive no âmbito particular. . Houve uma ou outra vez que brinquei com as maquiagens em casa, mas tudo ocorreu dentro de casa. As próximas vezes que me lembro de ter feito isso de novo já ocorrem publicamente.
Uma delas foi numa festa à fantasia que ocorreria na Unicamp. Essa foi a pior vez de todas as que me montei. Foi quando senti a transfobia de perto. Na ocasião, lembro-me de ter usado as roupas dessa minha amiga que citei anteriormente. Mas foi algo mais sofisticado: pela primeira vez eu fazia uma maquiagem pesada (feita também pela minha amiga), fiz chapinha no meu cabelo enorme e liso. Levei umas duas horas me arrumando. Quando fiquei pronta, meu então namorado disse que se recusava a sair comigo desse jeito. Era aniversário dele e ele se irritou com aquilo tudo. A conclusão é que eu me recusei a me desmontar e fui para a festa sem ele. Subi na bicicleta (sim, eu fui montada e de bicicleta) e lá encontrei um amigo que me esperava. A coisa foi ainda pior, meu amigo sentiu vergonha de sair comigo e dizia que aquilo não era uma fantasia. De fato, eu parecia uma travesti. Apesar de que nada justificava a vergonha. As pessoas na festa não me reconheciam de imediato. Isso era bem legal, eu estava experimentando uma identidade nova. Mas, me senti muito insegura, a montaria em si já te deixa insegura. E ainda tive o agravante de não ser apoiada pelas pessoas próximas.
Voltei pra casa pouco depois de estar por lá apenas meia hora. Ao mesmo tempo que tinha sido uma experiência muito bacana, eu me sentia mal. Não me montei mais por um longo tempo. O namoro acabou naquela noite e desde então me afastei do amigo.
Fui me montar novamente só quando fui morar em Madri, em 2009. Até então meu nome era Diana e não Jaqueline. Me montei várias vezes, mas a mais marcante foi no carnaval de 2010. Peguei tudo emprestado de uma amiga. Eu ainda não tinha perucas. Usei meu próprio cabelo, que estava meio chanel. A maquiagem era a mais elementar. Não sabia fazer pele, muito menos como se escondia uma sobrancelha.
Sempre fui frequentadora de boates, e sempre me fascinei pelas performances das drag queens. Por eu ter um corpo mais andrógeno, cabelos longos e alguns sinais de feminilidade no corpo, as travestis que conhecia nas boates sempre me diziam que eu levava jeito para travesti. Algo parecido acontece quando gays olham para algum hetero e dizem: vc não me engana. As travestis diziam isso de mim. Mal sabia eu que elas tinham razão em parte. Pois o que me atraia demais numa boate não era só a sensação de ser livre sexualmente, mas de poder ver os shows de Drag. Desde sempre eu observava os shows. Vi muita coisa ao vivo e durante anos fui estudando a retórica de cada Drag que eu tinha contato. Gostava de frequentar uma boate que se chamava "Insano", mas que logo fechou. Então passei a frequentar a "Dont Stop". Fui poucas vezes na "Subway" e nunca cheguei a ir às domingueiras da "Double Face". Fui também na antiga "The Club". Essas eram as casas que acolhiam as Drags. Eu acompanhava a agenda de cada uma, mas podia frequentar mais a "Dont", os outros lugares eu não podia, pois não tinha como ir. Muitas vezes não fui por falta de grana, mas muitas vezes eu ficava sem companhia para ir à demais casas. Meus amigos e até mesmo meu novo namorado daquele tempo não gostavam de ir às outras casas. Elas eram completamente desprestigiadas pelos gays cisgêneros. A "Double face", por exemplo, era considerada um gueto trans. Quase nenhum gay "decente" gostava de se misturar com o tipo de gente que frequentava a Double. Desde essa época eu queria morrer com essas coisas. Eu só não sabia que o nome desse preconceito era a transmisoginia.
Hoje, é um pouco diferente: a gente já vê drags fora desses guetos. Algumas passaram a frequentar espaços exclusivo dos gays cisgêneros. Mas isso se deve a uma mudança no contexto: houve uma valorização da drag por causa de RuPaul. Isso fez com que os gays cisgêneros (os donos de pink money) olhassem para as drags de uma maneira diferente. Essa mudança permitiu que até os próprios gays cisgêneros (muitos deles os próprios donos do pink money) pensassem na possibilidade de eles mesmo se montarem. Basta dar uma olhada para o movimento chamado de "New Face" que vcs verão que as drags ocupam espaços que não ocupavam no passado  (Kitnet, Sonique, etc) e que muitas dessas drags, principalmente as de São Paulo, eram gays cisgêneros que começaram a se montar. Muitas das novinhas não vieram de uma tradição drag, aquela em que existe uma mãe que ensina a filha.
Eu não sou exatamente uma Drag como as da "New face", mas foi esse movimento que me permitiu ser quem eu sou hoje. Eu também não tive uma mãe, eu aprendi a ser drag apenas observando. Eu nunca tive alguém que me ensinasse a me maquiar ou a costurar ou a dublar ou a me comportar como uma drag. Fiz muito trabalho de campo para entender minimamente dessas coisas. Hoje, com o youtube e o facebook, eu não preciso mais frequentar as casas propriamente, posso continuar observando virtualmente cada uma delas que me inspiram.

Depois daquele carnaval em Madri (tem até uma foto aí emcima - a primeira - pra mostrar como eu comecei), com o nome de Diana, eu tive a certeza de que eu queria isso para mim. Eu era uma espécie de travesti andrógena sem arte ainda.
Eu estreei como Jaqueline Furacão no ano de 2011, numa festa realizada na Unicamp. Era o Carnazebra e
era maio, por isso a comemoração. Comprei minha primeira peruca e um vestido de marinheira numa dessas lojas de fantasia. Fiz uma maquiagem até que bacana. Naquela noite, eu me diverti como nunca antes e me senti empoderada. Foi aí que a Jaque surgiu mesmo.  A minha relação com o mundo também tinha mudado. Tinha novos amigos, que me incentivaram. Um deles até começou a se montar comigo e saímos algumas vezes juntas. Na mesma época mais um grande amigo se somou: era a Karol Azalea. Ela estava começando no momento em  que eu recomeçava. Ela veio um pouco mais tímida que eu. Na verdade, aquele ano foi bastante tímido para todas nós. Mas conseguimos melhorar a aparência e começamos a frequentar os espaços em que poucas drags haviam estado.
Fiquei praticamente parada no ano de 2012, me montando eventualmente, mas sempre pesquisando. Foi um ano em que passei a observar as drags com um olhar mais profissional, comecei a sistematizar a minha drag: tanto com o figurino como com a arte. Em 2013, eu já tinha minhas características como drag delimitadas: eu decidi ser uma drag que atua em duas frentes. Uma delas é o artístico, decidi performar com o diferencial de acrescentar minha experiência com o circo. Acho que sou a única drag trapezista. A outra frente é o debatedor. Decidi que não queria estar só em boates. Eu não queria ser apreciada só pela arte, pela estética. Então decidi participar de palestras, debates, rodas de conversas, mesas-redondas, a oferecer aulas sobre gênero e sexualidade, pois isso também era constitutivo de mim. O circo sempre fez parte da minha vida, então seria impossível deixá-lo de lado, e a luta contra a discriminação por gênero (principalmente a transfobia) começava a emergir como algo fundamental em mim. Por isso eu digo que não há como delimitar o Diego e a Jaque em dois módulos desconexos.  
Tenho encontrado relativo sucesso como drag que debate. Sou convidada para muitos eventos, sobretudo universitários, e até ganhei o apelido de "drag politizadora". Mas, por outro lado, tenho encontrado resistência em me colocar no mercado. Como não venho de uma tradição drag, não tenho contatos para entrar na máfia das casas noturnas.
 Em junho de 2013 fiz uma performance utilizando do tecido acrobático numa festa na Unicamp chamada
"Festa do Babado". Considero essa a minha estreia nos palcos. Infelizmente não tenho registro desse dia. Em dezembro de 2013 também participei de um festival de circo em que interpretei uma música no trapézio.

2014 está sendo um ano muito importante, pois é um ano em que comecei a estudar o mercado e o público. Também fiz uma aliança com a minha amiga Karol.  Nós duas temos encontrado relativo sucesso pelas casas que frequentamos. Fizemos muitas amizades, inclusive com drags da "New face", que são preciosas para nós. Vamos ver o que o resto de 2014 aguarda para a gente. 

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