terça-feira, 11 de março de 2014

Privilégio dos nomes

Hoje eu vou relatar uma situação que me ocorreu no final de semana e que é muito representativa do que acontece frequentemente com pessoas transgêneras e não-binárias.
Para início de conversa gostaria de me identificar como uma drag queen e esmiuçar um pouco mais sobre o que isso significa para a minha condição de gênero. Como já disse num post passado, ser drag pra mim (mais especificamente a minha drag)  é uma performance passageira da mulher/feminino. Embora seja muito difícil delimitar quando eu começo e quando eu termino o ato de ser mulher/feminino, é no momento drag que faço isso mais intencional e conscientemente. Sendo assim, quando estou de Jaqueline, sou feminina e sou mulher. Na medida do possível, as pessoas me percebem assim, mas nem todas me tratam assim.
Agora já posso contar o caso:
Fui numa balada frequentada pelo público LGBT em Campinas. Já fui inúmeras vezes àquela casa, mas sem estar montada. Ao longo do tempo, fiz muitos amigos, dentre eles os funcionários e seguranças. Principalmente os seguranças se acostumaram comigo na minha condição masculina e a primeira vez que apareci lá montada, eles ainda hesitavam em me tratar como uma mulher. Pra mim, isso tudo é muito compreensível, dada a nossa educação cissupremacista. Não vejo nenhuma estupidez no fato de os seguranças me tratarem involuntariamente como homem. Mas, a coisa mudou de figura. Nesse nosso primeiro encontro, eu tive uma conversa tête-à-tête com eles e expliquei que havia mudado e que a partir daquele dia eu só me apresentaria na noite campineira como Jaqueline. Disse que gostaria de ser chamada de Jaqueline. A princípio, eles não engoliram e continuaram me chamando pelo meu nome civil. Relevei, mas na descontração sempre dava o toque de que meu nome não era aquele. Foi assim a noite toda.
No sábado passado (08/03), voltei à casinha e mal virei a esquina o segurança gritou em alto e bom tom meu nome civil: _ La vem o Diego! Engraçado que sempre me chamaram pelo meu sobrenome: Jiquilin. Mas nesse dia, deixaram de me chamar de Jiquilin para me chamar de Diego. Daí, eu cheguei e fingi que nada estava acontecendo. Mas um segurança em especial, esse que bradou meu nome civil assim que me viu, não parou de falar mais esse nome. Sempre que podia, ele terminava as sentenças acrescentando meu nome civil. Ignorei o quanto pude. Mas chegou o momento de ele preencher meus dados, seu outro colega segurança perguntou meu nome e eu disse: Jaqueline! Todos caíram na risada, zombando de eu me apresentar com um nome desses. De imediato, o segurança principal disse que era para colocar Diego na ficha. E assim seu amigo o fez. Quando eu tomei a ficha em minhas mãos e pude constatar que, de fato, lá estava escrito "Diego" (sem sobrenome, só assim), fiquei furiosa e piquei o cartão. Disse que aquilo era um ato de transfobia. Muito provavelmente nenhum deles ali sabia o que significava isso. Daí eu comecei a explicar que aquilo não era certo. Nessa altura, o "gerente" (ou um superior, não sei exatamente a função daquele funcionário - ou até mesmo se é o dono) já estava do lado ouvindo tudo. Eles argumentavam comigo que deveriam usar o meu nome de RG. Eu achei muito estranho que só era necessário meu pré-nome no cadastro. Mas o argumento final dado por mim foi quando mencionei o nome de uma drag famosa que costumava frequentar o local.  Perguntei se eles sabiam o nome civil dela e com que nome ela entrava lá. Eles não sabiam e ela era cadastrada com o nome de drag!
Bom, tudo isso demonstra como as pessoas tem um fetiche pelo nome civil e como a transfobia se mascara através da "justiça". O fato é que não se trata apenas de cumprir normas e leis, eles se aproveitam para zombar do seu nome o tempo todo. É um ato cruel e sádico que eles sentem em dizer que sabem seu nome civil.
Isso acontece diariamente com as mulheres transgêneras, que são mulheres o tempo todo. A mídia, por exemplo, não perde tempo se souber o nome civil da mulher trans*. Quantas notícias vcs já leram nos últimos tempos em que se escreve bem claramente o nome civil, principalmente, de travestis? Ainda por cima, muitas vezes a mídia tem a pachorra de emendar logo após o nome civil, a frase: "mais conhecida como ..." ou "nome de guerra".
Nomear é uma coisa muito séria, faz parte das identidades e inscreve as pessoas na sociedade. Ser tratada como se quer deveria ser um direito básico e não um privilégios de homens e mulheres ocidentais cisgêneros.
É que o modelo de nome civil documentado em RG é muito falho e COLONIZADOR. Fico pensando em certas culturas ameríndias, em que o sujeito recebe vários nomes ao longo da vida. Quando esse índio vai exigir seus direitos ao estado, qual nome ele deve apresentar em seu RG? Deveria ele escolher entre um único nome? E as pessoas transgêneras que desejam alteram seu nome, devem ficar a mercê das carniçarias de médicos e juízes cisgêneros? E as pessoas de gênero não-binário que têm mais de um nome, devem primar seu nome designado, assim como seu gênero, ao nascimento?

O modelo de se ter um nome em um documento não contempla minorias. É elaborado pelas classes supremacistas e para ela. Nós apenas temos que nos enquadrar sempre. Mas, se em tempos pós-coloniais, os sujeitos históricos tem voz, é chegada a hora de também repensar a maneira como nos denominamos a nós mesmos e uns aos outros. 

P.S.: Passado um tempo, devo fazer uma ressalva. O estabelecimento referido nesse relato reconheceu o erro. E nas outras vezes que voltei lá fui muito bem tratada. Tenho sido acolhida com muito carinho. Compreendo o conflito inicial de estranhamento. 

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