terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Entrevista com Indianara Siqueira

A nossa entrevistada de hoje é a admirável Indianara Siqueira. Ela é presidenta do grupo Transrevolução, que tem a finalidade de auxiliar pessoas trans. No ano passado, foi intimada a comparecer no tribunal acusada de "ultraje público ao pudor". Ela havia mostrado os seios na Marcha das Vadias do Rio. Foi a primeira a revelar na prática uma contradição da justiça, que lhe recusa a reconhecer como mulher, mas que não hesita no momento de proibi-la em andar sem camisa.

Jaqueline Furacão - Indianara, conte um pouco pra gente sobre a polêmica do topless? Qual o seu envolvimento com a Marcha das vadias?

Indianara - O topless na realidade eu faço desde 2001, me tornei adepta na Suíça (Lago Ouchy-Lausanne) onde morei e depois em Copacabana, no Rio (em frente ao Copacaban Palace). Mas tinha tido problemas antes disso por não gostar de marcas das alças de sutiã de bikini nas costas. Aí, em Santos (onde também morei), uma vez a polícia me encheu o saco e aleguei que "legalmente era homem". Se me prendessem, teriam que fazer o mesmo com todos os homens sem camisa na praia. Anos depois (2011), quando me tornei uma das organizadoras da Marcha dxs Vadixs, a polêmica voltou sobre se a polícia prenderia ou não as mulheres da marcha por conta do peito de fora. Eu disse que iria na frente, pois legalmente eu podia. E assim foi, eu tirei, as mulheres tiraram o peito pra fora e fomos em frente. Em 2012 de novo e aí houve a invasão da Igreja NSra de Copacabana e eu fiquei visada. Depois, quando chamei a polícia pra resolver problemas de transfobia contra amigas, eles diziam q pelo documento éramos homens. Então criei um protesto: "Meu peito, minha bandeira, meu direito". E saia um dia da semana à noite ou de dia com os seios desnudos por Copacabana. Aí fui detida e viralizou o caso na net. No ano passado, na marcha, foi tranquilo, mas esse ano fui detida outra vez na lapa e vou passar por outra audiência.

Jaqueline Furacão - Você ta na luta, no movimento há bastante tempo. Há quantos anos? Como vc resumiria sua trajetória?

Indianara - Eu comecei sendo treinada pelo departamento municipal de dst/aids de Santos como multiplicadora de informações e agente de prevenção. Como presidente do Grupo Filadélfia de Santos, exigimos o uso do nome social na conferência municipal de saúde em 1996. Pela 1º vez no Brasil, as Trans exigiam que um governo lhes respeitasse o nome em prontuário médico. Foi aprovado! Exigimos que casais homo fossem considerados casal de fato. E trans, na hora da internação, ficasse em ala feminina (não se falava em homens trans). Tudo isso também foi aprovado e, aí, muita emissora de tv, jornais do Brasil e exterior noticiaram o fato e a polêmica me levou ao patamar de liderança nacional e ativista. Então, ao invés de só saúde, passei a ser ativista de direitos humanos. Algumas pessoas achavam que eu era mais um rostinho bonito querendo fama, ainda mais que fui indicada por uma amiga (a Michelle de Curitiba) pra posar nua pra Big Man Internacional de Travestis. Com os anos, as pessoas viram que eu tinha vindo pra ficar. Hoje têm pessoas que dizem que eu entreguei minha juventude em prol do ativismo. Não me arrependo. Afinal, ninguém me pediu esse "sacrifício". Faço por que amo fazer e amo o ser humano. E os animais também ,a mais de dez anos sou vegana e protetora dos animais.

Jaqueline Furacão - A gente sempre ve vc muito tristinha no Facebook. Vc acha que a luta te dá forças pra seguir em frente?

Às vezes entro em depressão, pois parece que lutamos e nada conseguimos, principalmente quando termina o ano e posto o relatório das mortes de Trans assassinadas no Brasil (faço isso desde de 2011). E a violência dos fatos me choca e aterroriza. Então penso: é melhor vc escolher a maneira de morrer que morrer das maneiras atrozes que vejo. As fotos e vídeos das mortes também me chocam e deprimem. Sou ativista há mais de 20 anos e não me acostumo. Mas a militância e amigos me dão força pra continuar sim. Quando no meio de uma manifestação de milhares de pessoas alguém que vc nunca viu te abraça e diz: obrigada por vc existir, outras dizem: vc é minha inspiração,entre outras, claro que te fortalece.

Jaqueline Furacão - E seu nome vem de onde? Tem algum significado especial pra vc?

Indianara -  IN (que vem de dentro) DIANA (a lua) e RÂ (o sol) = A FILHA DO SOL E DA LUA.
Mas os brasileiros só conseguem dizer INDIANARA que descobri que em sânscrito quer dizer: beleza pura.
Tá bom também!

Jaqueline Furacão - Por que o dia da visibilidade trans é importante?


Indianara - Queríamos que esse dia não existisse, mas como existe é importante que não passe em branco, pois nos tornaria mais invisíveis do que já somos na sociedade. Temos que dar importância a esse dia para que as pessoas escutem nossas vozes e saibam que precisamos de direitos que nos são negados desde os mais básicos. E o pior é ser invisível dentro do movimento LGBT. Então, para nós, é muito importante esse dia. É o dia que as pessoas nos notam e se dão conta que existimos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Entrevista com Viviane V.

Na entrevista de hoje, vcs vão conhecer um pouco mais sobre Viviane V., Vivi para os íntimos. Ela mora em Salvador, é formada em Ciências Econômicas pela Unicamp. Atualmente faz mestrado em Cultura e Sociedade na Ufba e é conhecida pelo seu enfrentamento acadêmico à norma cisgênera cientificista.



Jaqueline Furacão - To curiosa pra saber como foi a sua última viagem para a Alemanha. O que você encontrou por lá? Aproveitando, conta também de sua experiência no Canadá. Essas viagens tem sido importantes para a sua reflexão?

Vivi - Minha viagem a Berlim foi extremamente positiva... fui convidada para integrar um evento que reuniu ativistas trans* de diferentes regiões do mundo e representantes de entidades que financiam projetos em justiça social. Eu participei como alguém que ajudou na organização do evento, tendo também moderado uma das apresentações, sobre Gênero e Diversidade Cultural.
Foi um evento muito interessante, onde pude conhecer melhor o contexto global das lutas e resistências trans* pelo mundo, e dos precários recursos com que, no geral, lutamos – uma das mensagens principais do encontro foi justamente o subfinanciamento de projetos em questões trans* pelo mundo. Outro elemento interessante foi este contato com este ambiente de financiamentos, projetos e ativismos: como acadêmica, meu contato com estes debates não é tão frequente, e considerei interessante ver como uma linguagem quase corporativa se desenvolve nestes meios, bem como a reprodução de dinâmicas sul-norte de poder. Felizmente, este foi um evento em que vozes críticas puderam problematizar algumas destas questões, e o diálogo entre ativistas e entidades de financiamento me pareceu bem positivo – apesar do cenário geral grave.
Durante esta viagem, também tive a oportunidade de conhecer novos contatos e afetos em Barcelona, onde passei alguns dias. Pude pensar em outras possibilidades de ação política trans*, bem como me contentar ao ver o quanto intersecionalidade e questões trans* estão presentes em tantos debates críticos nos estudos sociais – ainda que haja problematizações de variados graus a se fazer, ali. Foram dias intensos, de ruas a pé, de encontros e ideias com pessoas pensando outras formas de viver – e outras, em diversas dimensões e perspectivas –, de realidades imigrantes e precárias, de vidas. Ainda estou me sentindo em processo de absorção das vivências que lá aconteceram.
Sobre o Canadá... entre 2007 e 2011, tive a oportunidade de viver em Toronto, Ontário, ao leste do país. Sem dúvidas, este foi um período muito intenso em reflexões de gênero, mesmo que de forma menos explícita que esta viagem mais recente a Alemanha e Espanha: foi durante estes anos que pude vivenciar meu gênero inconforme e começar a ler sobre questões trans* para além das perspectivas colonialistas sobre nós. Não seria um grande exagero dizer que viviane nasceu lá no Canadá, onde iniciei diversas experimentações e práticas generificadas, como a depilação, maquiagem, vivência social feminina trans*, entre outras. É um período muito especial de minha vida.

Jaqueline Furacão - Falando de academia, conta um pouco pra gente sobre as polêmicas com o "pessoal da teoria queer".

Vivi - É importante ressaltar que não há 'um pessoal da teoria queer', em primeiro lugar. Há um grupo de pessoas que é reconhecido como tal 'pessoal', mas – e espero que estas pessoas, inclusive, concordem comigo nisto – há uma diversidade de pessoas pensando a partir dos estudos queer, com diferentes propósitos, e pensar em termos de alguma 'filiação' (tal qual 'o pessoal da teoria queer') seria redutor das potências destes estudos para pensar gêneros, sexualidades e outras questões.
Há algumas 'polêmicas' que aconteceram mais diretamente comigo, e eu as sumarizaria em 2 aspectos: (1) o menosprezo intelectual em relação às perspectivas políticas de pessoas trans*, algo que ilustro através de como percebo a aceitação acadêmica da categoria analitica de cisgeneridade; e (2) as dinâmicas de poder e ego que regem parte do campo mais ligado aos estudos queer no Brasil (algo particularmente problemático neste campo de estudos, criticamente antihierárquico).
O primeiro elemento, que eu caracterizo a partir de uma leitura anticolonial, tem a ver com os processos de silenciamento e marginalização por que propostas e leituras críticas realizadas por pessoas trans* passam. É assim que compreendo as suspeitas de que, por exemplo, falar em cisgeneridade e em pessoas cis seria 'criar um novo binário', ignorando que algumas das pessoas que utilizam estes termos estão se inspirando em leituras que desconstroem qualquer idealização destas categorias como perfeitamente estanques e binárias com fronteiras bem definidas. Trata-se de inferiorização intelectual, imaginar que pessoas trans* não estejam cientes dos debates sobre identidades e processos de subjetivação que acontecem nos estudos queer e pós-coloniais.
A proposta da cisgeneridade como conceito, enfim, é muito semelhante às propostas de se problematizar normatividades e posições normativas como as da heterossexualidade e branquitude: nomear o que antes era tido como 'normal', 'biológico' ou 'de verdade' significa deslocar a normatividade, e não necessariamente (re)criar algum outro binário. Alguns dos problemas que aconteceram com pessoas acadêmicas foram justamente neste sentido: para quem sempre se sentiu confortável em opor pessoas trans* a pessoas 'biológicas', 'de verdade', 'naturais', etc. (a criatividade terminológica é considerável), era curioso, em minha percepção, notar as problematizações – suposições de que 'cis' inauguraria e reificaria algum binário, 'nem todo mundo é 100% cis', ... – que foram sendo feitas em relação a um substituto possível para tais categorias colonialistas e inferiorizantes, a cisgeneridade.
O segundo elemento, por sua vez, é mais relacionado a lamentáveis dinâmicas políticas de poder nos meios acadêmicos, frequentemente pautadas por egos de dimensões consideráveis, perspectivas acríticas desde um ponto de vista intersecional (o que favorece marginalizações e exclusões nestes ambientes de pesquisa, em uma perspectiva micropolítica), eurocentrismos, classismos, etc. Neste sentido, fiquei profundamente frustrada ao notar que algumas de minhas críticas incisivas eram vistas como algo agressivo, quando não como devaneios que não valeriam a pena um debate: é assim que fui convidada a me retirar de um projeto sobre pessoas trans* em Salvador, é assim que se 'compreenderam' algumas de minhas críticas a instâncias ocorridas no Seminário Desfazendo Gênero de 2013, é assim que vão se expressando desinteresses em questões trans*, transfeministas, e em meu projeto de estudos. E é particularmente triste que isto aconteça em âmbitos mais relacionados aos estudos queer, que têm diálogos constantes com críticas incisivas às hierarquias do saber, e que vem tentando trazer perspectivas intersecionais importantes em outros contextos para se pensar para além de gêneros e sexualidades.

Jaqueline Furacão - E a sua vida amorosa? Vc é uma adepta do poliamor?

Vivi - Bom, minha vida amorosa é feita de todas as amizades, solidariedades e afetos que trazem boas energias para seguir rexistindo. E, nesse sentido, felizmente tenho tido muitas alegrias, muito além do que eu poderia imaginar, dado este nosso contexto histórico profundamente cissexista/transfóbico. Evidentemente, também não posso deixar de fazer uma leitura crítica disto, avaliando o quanto outras de minhas posições sociais privilegiadas dialogam com estas possibilidades de relações positivas.
Eu não sei se gosto de utilizar os termos 'adepta' e 'poliamor', necessariamente, até mesmo por não ter muita familiaridade com as terminologias de um ponto de vista político. Acredito, sim, na ideia de que há uma normatividade monogâmica em boa parte das sociedades contemporâneas, e que tal normatividade deve ser desconstruída.
De um ponto de vista mais pessoal, gosto de imaginar que as pessoas com quem me relacione possam eventualmente constituir uma rede de afetividades e sexualidades livres, de acordo com seus desejos e perspectivas de vida. Incluindo-se, aí, a possibilidade de que haja, também, relacionamentos monogâmicos não normativos dentro destas redes.
Bem, algumas análises pessoais, rs. Amo várias pessoas, e me sinto muito bem por amá-las, a cada uma delas. Estes amores têm sido uma das minhas forças mais importantes e bonitas, apesar de eu às vezes ter dificuldades de expressar minha gratidão e felicidade a elas. A uma destas pessoas, tenho amado de uma forma especial (e confusa), mas seria deselegante nomeá-la, aqui – sem contar, ainda, que em um contexto mononormativo, as formas de compreensão do que signifique amar de diversas formas sejam demasiado limitadas. Sonho com o dia em que, existencialmente, tenhamos repensado nossas formas de relacionamento amorosos (e não me restrinjo ao considerar que formas sejam essas), de maneira a desconstruir e desaprender determinadas relações de poder e individualismos, e que os amores possam flutuar ao sabor do vento de desejos solidários e construtivos, inclusive sem negar a possibilidade de que haja momentos de estabilidade amorosa agenciada. Neste sentido, por exemplo, é que penso que alguns arranjos monogâmicos poderiam ser interessantes para mim, em determinados contextos.

Jaqueline Furacão - Por ser uma mulher trans*, você já teve problemas familiares e problemas para conseguir emprego?

Vivi - Sim, houve alguns problemas e atritos com pessoas familiares e amigas após minha autoidentificação enquanto mulher trans*. Bem aos poucos, alguns destes problemas têm se resolvido, e outros não; algumas relações foram cortadas, outras fortalecidas, e sem dúvidas minha identidade de gênero foi um elemento importante para se analisarem as mudanças recentes nestas relações interpessoais.
De um ponto de vista profissional, também houve problemas, apesar de minha posição privilegiada em termos de acesso a recursos educacionais e profissionais. Atualmente cursando o mestrado sem bolsa de pesquisa, tem sido complicado procurar por trabalho em minha área de formação e atuação anterior (ciências econômicas e auditoria interna) – seja por cissexismos institucionais ou pela insegurança decorrente deles –, e quando consegui um trabalho aquém de minhas qualificações, não houve a possibilidade de desempenhar meu trabalho utilizando-me de minha autoidentificação enquanto mulher.

Jaqueline Furacão - Por que um dia da visibilidade trans* é importante?

Vivi - Vou utilizar a definição que li em uma das postagens da blogagem coletiva para o Dia da Visibilidade Trans*: ele “existe para dar voz, identidade e cidadania às pessoas trans*, que vem a ser pessoas transexuais, transgêneros, travestis ou outras que não se identificam com a ideia normativa que temos de “masculino” e “feminino”.”
Neste sentido, acredito que este dia de celebração e luta carregue consigo uma potência bastante significativa. Mas precisamos sempre estar criticamente atentas, enquanto pessoas trans* e aliadas, para que este dia signifique descolonização, e não apropriação cistêmica para fingir que as coisas estão melhorando e o mundo é legal. Porque não é. 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Entrevista com Leila Dumaresq

Foto retirada do site do projeto Transversus
Na entrevista de hoje, vamos conhecer um pouquinho mais de Leila Dumaresq. Ela tem 36 anos de idade. É designer de jogos e formada em Filosofia. Recentemente participou do projeto Tranversus com seu depoimento sobre ser uma mulher trans. Tem um blog e uma página chamados "Transliteração". Fiquem com o carisma de Leila:


Jaqueline Furacão -  Leila, vi que vc está usando o nome de Lígia no Facebook? Parece que o Facebook te bloqueou com o nome de Leila. O que aconteceu? Conta um pouco pra gente como as políticas da rede social podem ser transfóbica.

Leila - O Facebook acatou uma denúncia de perfil falso contra mim. A denúncia foi anônima, a condenação foi sumária e minha única possibilidade de usar o perfil novamente foi mudar o nome para Lígia (que me veio à cabeça na hora). O problema é que para eu poder voltar a usar Leila, tenho que enviar meus documentos para que eles, segundo os termos que eles mesmos escreveram, imponham a mim o nome escrito no RG. É exatamente isso que eles dizem que vão fazer: Mudar o perfil e, junto, as minhas fotos marcadas, comentários, e até mudar a citação que outas pessoas fazem de mim. É bastante aterrorizante quando o nome civil está errado.
Muitas pessoas me tranquilizaram dizendo que o facebook “alivia” para pessoas transgêneras. Mas isso me incomoda também. Eu não quero que o facebook seja “bacana” comigo. Quero o mesmo direito de  uma pessoa cisgênera, só porque a constituição diz que minha imagem pública tem o mesmo valor que a de qualquer outro cidadão. Claro que ter o nome respeitado por quem quer que seja é mérito da pessoa ou organização. Neste caso, eu estou sofrendo discriminação institucional também.
Apesar de saber que o Facebook não está expondo pessoas trans, só pra garantir, vou renovar meus documentos para eu ter mais certeza que serei reconhecida como mulher transgênera. Porque a foto ao lado do nome no documento será a única informação atestando a condição. E eu fico com a dúvida: Que será que o funcionário da rede social verá em minha imagem quando deparado com o nome civil nos documentos?
Imagino que tudo terminará bem. Hoje, eu já conto essa história para conscientizar as pessoas de como sente-se uma pessoa socialmente vulnerável. Para que saibam quanta burocracia a mais eu enfrento e quanta coisa dada como garantida, no meu caso, depende de  arbitrariedade ou boa vontade.

Jaqueline Furacão -  Vc é filósofa e designer de jogos. Como vc concilia essas duas coisas?

Leila - Pra falar a verdade, eu nunca tentei conciliar. Quando eu estou procurando emprego escrevo que sou “generalista” no currículo, mas não tenho problema em dizer e ouvir que minha vida foi um tanto quanto errática.
Eu trabalhei com essas áreas porque eu sempre quis mexer com algo que me apaixonasse. E fui tão teimosa nesse propósito que me envolvi em duas áreas que não dão dinheiro com facilidade (não dá pra usar uma para financiar a outra). Hoje eu acho isso que fiz meio louco, mas não me arrependo porque também eu vejo que conquistei habilidades e sensibilidades que me ajudam a resistir, sobreviver e me desenvolver apesar das lutas sociais e políticas. No final das contas eu gosto de pensar no que está acontecendo comigo.

Jaqueline Furacão -  Quais são seus planos profissionais para o futuro?

Leila - É tudo muito novo para mim. Eu não trabalhava mais com games fazia cinco anos. Então eu fui chamada por um grande parceiro de volta à ativa em 2013. Isso trouxe novos contatos, oportunidades e dilemas. O mercado de games é hoje bastante competitivo e dinâmico, mas há espaço para gente independente como eu.
Pretendo comunicar-me mais com as pessoas: através de palestras, seminários ou cursos. Também pretendo lançar micro games, a menos que surja algum projeto maior para eu participar, mas isso depende de conversas que estão em andamento.
Há muitos projetos na verdade, mas eu gosto mesmo é de fazer surpresas.

Jaqueline Furacão -  Você toca uma página no Facebook e um blog, o Transliteração. Você os descreve como um blog de humor, crítica e escrita transgênera. Diante do humorismo atual, em que a transfobia rola solta, falta crítica e falta escrita transgênera. Vc acha que consegue fazer tudo isso, criticar e falar de transgeneridade sem perder o humor?

Leila - Quanto à crítica e à escrita, faço meu trabalho de formiguinha, não é? Dou minhas ideias e as deixo disponíveis para a comunidade aproveitar. Penso meu trabalho como contribuição. Escrevo para melhorar nosso repertório de ideias e argumentos. Não me foco em vencer a guerra. Só tento fazer a minha parte em cada batalha.
Eu participo também de grupos presenciais de apoio mútuo. Esse cotidiano ajuda a equilibrar a perspectiva macabra das estatísticas e lutas institucionais horrorosas. É fato que conseguimos ajudar as pessoas (pelo menos a sobreviver com mais dignidade). Isso é um ótimo remédio para enfrentar o horror institucional. Ter ajuda, também é importante. Por isso digo que faltam grupos de apoio e acolhimento no movimento. Precisamos muitos, para todas as pessoas unirem-se em torno deles e a partir deles enfrentar a barra pesadíssima de sobreviver.
Já diante do humorismo atual eu traço uma linha divisória. Me posiciono de um lado e ele do outro:
Os humoristas têm dito que eles fazem crítica de costumes. Eles mostrariam o ridículo e o absurdo do ser humano através de personas (ou personagens) que representam defeitos que as pessoas não querem ver nelas mesmas. Também afirmam que o humor se outorga liberdade total para criticar qualquer comportamento ou costume.
A princípio, nada alarmante. Apenas uma definição. O problema é o que eles fazem a partir daí: e o maior desserviço que essa “escola” de humor faz é nivelar privilegiados e oprimidos. No campo discursivo desse humor, oferecer uma banana a um negro é o mesmo que oferecer protetor solar fator mil à um branco. Assim, eles apagam a opressão histórica. Neste ponto, o princípio de que todos devem suportar crítica humorística dos costumes não faz distinção de valor entre a humilhação preconceituosa, a crítica do preconceituoso. São apenas conteúdos válidos de um repertório permitido.
Esse humor é colonizador. Ponto final. Não é mais a cansativa polêmica da liberdade de expressão  quando conseguimos apontar o que há de ofensivo e prejudicial neste humor. Infelizmente, a própria sociedade deveria regulá-lo, não aceitando esse tipo de trabalho. Por hora, o que posso fazer é apoiar todos os militantes que denunciam as formas desses abusos. Enquanto houver vozes da consciência social, há esperança.
Existe outro humor para eu usar? Principalmente, existe um que funcione diante do horror que é viver em um campo de extermínio de transgêneros como a sociedade brasileira? Um país que ceifou por ódio a vida de uma pessoa trans a cada três dias?
Claro que sim! E não preciso ir muito longe para citar minhas referências:
Primeiro, gostaria de citar a página do facebook Travesti Reflexiva. Elas são politicamente incorretas, provocadoras incontroláveis, não perdoam ninguém. Muito parecido com o que os humoristas mainstream fazem. E onde está a diferença? A proposta dessa página é justamente desconstruir o estereótipo negativo da travesti ao mesmo tempo que detonam e denunciam outros personagens e situações de opressão que elas sofrem. Eu diria que a liberdade de expressão no humor serve para proteger a mensagem desse pessoal e não os abusos que citei anteriormente.
Outra referência contemporânea é o George Takei. Ele foi o Capitão Sulu em Jornada nas estrelas. Usa sua fama e um incrível carisma para defender e divulgar a causa LGBT e a memória dos campos de concentração para japoneses (nos quais ele esteve, inclusive)  nos EUA. Quando o estado do Tennessee criou uma lei absurda proibindo a palavra 'gay' nas escolas ele fez uma campanha pública para que as pessoas usassem seu nome no lugar da palavra 'gay'. Ficou muito engraçado, porque as pessoas falavam: “É OK ser Takei” como forma de resistência pacífica.
Há também o Charles Chaplin, que só para citar um caso, filmou o Tempos Modernos: fazendo um pastelão, ele mostrou claramente como a revolução industrial desumanizava os trabalhadores. Contraponha isso a qualquer comédia moderna, que mostra sem parar “pessoas atrapalhadas” que superam “seus defeitos” nas mais diversas situações.
E quero terminar a lista com os Doutores da Alegria e o Patch Adams (o verdadeiro, procure a entrevista no Roda Viva). Eles mostram claramente um tipo muito sutil, delicado e ao mesmo tempo poderoso de humor.
Com eles eu aprendi que a alegria, por ser uma emoção contagiante, tem o poder de espantar o horror dos nossos corações. É uma ferramenta de coragem e resiliência diante do medo. Porém, esse mesmo efeito pode ser um instrumento de banalização do mal, fazendo com que as pessoas riam ao invés de horrorizar-se diante de certas situações.
Eu sou contra o uso colonizador e deslegitimador de identidades oprimidas e odiadas. Acho que a linha que separa um tipo do outro é bem clara.

Jaqueline Furacão -  Os encontros trans que acontecem no Centro de Referência LGBT de Campinas, dos quais vc participa, são bem diferentes dos espaços acadêmicos que debatem transgeneridade. Quais as diferenças entre eles que fazem com que vc frequente os dois espaços?

Leila - Em primeiro lugar, todas as vozes têm o mesmo peso. O que às vezes causa uns problemas de entendimento, mas essa igualdade mostrou-se riquíssima. Minha sorte foi chegar completamente destruída pelo cistema. Chegasse eu lá com um pouco mais de identificação com meus privilégios acadêmicos, talvez fosse outra pessoa, muito mais chata na minha opinião. Porém (sorte minha, sempre vou ser grata), eu cheguei lá terraplanada pelo cistema porque o jogo dele é feito para nós perdermos sempre. E justamente minha educação formal, da escolinha até a universidade me ensinou a seguir as regras. Devia ter um jeito de vencer, mas no jogo da opressão não há. Então eu já não acreditava em nada que havia aprendido naquele momento.
Nesse clima que fui lá e ouvi. Aquelas mulheres trans me acolheram e ensinaram a ser mulher como elas. Como disse, eu queria aprender. E elas me ensinaram.
E aconteceu algo mágico disso: eu adquiri uma autêntica cultura feminina com elas. Um ser mulher codificado em gestos, relações com roupas, cosméticos, corpo, significações e símbolos. Inclusive, essa cultura me deu elementos intuitivos para lidar com a identidade e alteridade do feminino cis e trans. É um grupo bastante diverso quando cheguei nele. Ainda é bastante identificado com a transexualidade, mas não é exclusivo de mulheres trans.
Eu também fui usuária do CR e tive contato com diversas mulheres trans que não frequentavam o grupo. As conversas com todas elas também me ajudaram a construir a mulher que sou. E nada disso passava diretamente pelo discurso político ou acadêmico. São um pequeno patrimônio cultural imaterial que herdei da comunidade de mulheres trans de Campinas que por qualquer motivo frequentam o CR: é o que entendem por ser mulher trans donas de casa, prostitutas, cabeleireiras, operadoras de telemarketing, vendedoras, moradoras de rua, estudantes, modelos.
Claro que eu faço isso do meu jeito. Hoje entendo como um elemento interseccional da minha identidade, mas é um muito precioso. Ele codifica minha existência e meu lugar no mundo. Um lugar concreto, entre pessoas, localizado temporal e geograficamente.
Isso tem uma consequência muito intensa e bonita na minha relação com outros grupos aos quais eu também pertenço: eu me sinto  deslocada de alguns discursos acadêmicos ou políticos. Esses signos indômitos que eu trago nem sempre são bem expressos nos termos dos discursos políticos ou acadêmicos. Por mais corretos que sejam os discursos institucionais, eu não quero abrir mão da minha própria vivência.
Começo a perceber que não estamos dando conta destes que chamo signos indômitos. São sutis, transmitidos por vivência, são em parte verbais, em parte comportamentais, mas definitivamente são identitários. São culturais. Eu diria que a maior parte das minhas discordâncias dentro do movimento online e de certos estranhamentos  e desentendimentos são um fruto interessante dos meus signos indômitos e meu treinamento discursivo acadêmico.
Eu falava como brincadeira que era a filósofa transgênera da região entre a rodoviária e a prefeitura de Campinas. Pelo visto, o fundo de verdade dessa brincadeira é tão profundo e rico que pode conter a chave para apaziguar discussões e unir grupos de pessoas transgêneras Brasil afora. Precisamos levar mais a sério para o fato que grupos identitários isolados produzem identidades diferentes e autênticas. E cada uma dessas contém experiências de resistência únicas, que nem sempre serão codificadas por um discurso político ou acadêmico. Hoje estou despertando para o fato que esse “ruído” em nossas discussões pode tornar-se um grande coro, em que cada voz traz uma história diferente de sobrevivência, superação e resistência.

Jaqueline Furacão -  Por que o dia da visibildiade trans é importante?

Leila - A compaixão é uma questão humana essencial. Toda opressão é baseada em retirar a compaixão de uma parcela da população. É a naturalização da condição subumana.
Além disso, para submeterem-se de livre e espontânea vontade, as pessoas precisam ter medo, muito medo. Aí que entra o discurso de ódio. Eu poderia listar uma lista enorme de opressões. Todas funcionam assim e todas têm um interesse muito específico de controle social.
No caso das pessoas transgêneras, as regras que quebramos violam o estado de terror a respeito da agência individual sobre os corpos. O espantoso é como pessoas conseguem viver um roteiro sempre igual a respeito dos seus corpos e vivências e nunca perguntarem-se sobre o que estão fazendo de suas vidas, se não há outras formas de organização social que lhes permitira explorar mais e melhor suas potencialidades no tempo de suas vidas, se não há um estado corporal mais interessante. É absurdo que as pessoas não se questionem. Só é cômodo não se questionar, mas de modo algum isso é bom. As pessoas sofrem e pensam que tem que ser assim mesmo.

Temos que ter um espírito mais explorador. “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Há ousadias muito necessárias. Admiramos do modo errado esses heróis das histórias. Esse “mais do mesmo” só interessa aos pouquíssimos que estão ganhando muito com isso.

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