terça-feira, 14 de outubro de 2014

Sobre o ato contra o brutal assassinato de Géia Borghi

Ontem estivemos reunidos nas ruas do centro de Campinas para fazer um ato contra o brutal assassinato de Géia Borghi.

Abaixo segue o relato de Amara Moira, uma das organizadoras da manifestação.
Amara tem sido uma das minhas grandes colaboradoras nesses últimos tempos. Mulher transgênero, ela tem tentado se aventurar no mundo da prostituição e tem deixado seus relatos registrados na sua recente página do site feices: "E se eu fosse puta: Amara da depressão".

***


Não sei o que me deu, só sei que saí de mim. Vendo a EMDEC meio arredia em parar o trânsito, decidi
eu mesma ir tentar a sorte e entrei na Av. Glicério. O primeiro carro nem tomou consciência e acelerou violentamente na minha direção me obrigando a retroceder, mas não deixei barato com o segundo: parei na frente, ele acelerou e, então, virei de costas pra ele perceber que eu não sairia dali. Foi pura adrenalina quando ouvi o carro brecar com tudo e dar um totozinho na minha bunda... parei o veículo na buzanfa, aí aproveitei pra sentar no capô e sambar no foda-se do motorista, esfregando o cartaz nas fuças dele: "ESSA TRAVESTI VCS NÃO MATARAM!"
A euforia tomou conta de mim e dali em diante nada mais me detinha. Paramos a rua, botamos o carro de som pra gritar, cada uma das pessoas que queriam falar sobre a Géia se revezando no microfone e exigindo a plenos pulmões justiça e respeito para com Géia Borghi, para com LGBTs. Boa parte não eram discursos de militantes mas sim de amigas e amigos de Géia, gente que a conheceu no hospital e que aprendeu a respeitá-la testemunhando sua competência e empenho, sua dedicação obstinada em salvar vidas de crianças. Não sendo falas militantes, muitas vezes diziam o que não queríamos ouvir, p.ex. quando enfatizavam a injustiça de Géia ter sido brutalmente assassinada apesar de ser uma transexual decente, ou seja, era inaceitável que ela tivesse a vida ceifada mesmo não sendo puta, promíscua e escandalosa (coisa particularmente dolorosa para nós putas, promíscuas e escandalosas que ali estávamos prestando nossas homenagens e emprestando nossa força para o protesto). No entanto, mesmo essas falas que diziam o que não queríamos ouvir, elas também nos tocavam fundo, nos faziam chorar com as recordações dos feitos admiráveis de Géia, sua habilidade em reavivar a vida em crianças que estavam nos últimos suspiros, nos braços de mães já conformadas com a catástrofe, sua felicidade mesmo em empenhar a própria vida para que outras vidas pudessem seguir seu caminho serelepes mundo afora... chorei ao escutar esses depoimentos, todos cheios de contradições, porque o mundo é contraditório, a minha fala mesma sendo super contraditória, improvisada, estropiada.
Géia também era assim, uma militante por tabela, obrigada a sê-lo pra poder existir, pra poder sobreviver, como toda travesti: viver para nós é um ato político e escancaramos nossa militância na testa, todas sempre prontas para enfrentar agressões e revidar à altura, na horinha mesma, senão corremos o risco de virar poeira. 
Géia cavucou todas as brechas que pôde e ingressou no mercado formal de trabalho; não sendo puta, fugiu ao destino de 90% de nós travestis e transexuais -- nunca, no entanto, se furtando a nos respeitar e a conviver com nós que não buscamos esse seu caminho; brilhou na noite e encantou gerações de LGBTs do Brasil inteiro, pioneira na confecção de roupas inusitadas a partir de lixo, inovadora na arte das dragqueens a cada aparição nos palcos, generosa com todes que a cercavam atrás de conselhos e de apoio para igualmente brilhar. E mesmo fugindo a todo o estereótipo das travestis ("decente", "não escandalosa", "sempre bem vestida", conforme dito no protesto), mesmo assim teve o fim que todas temos, a mesma morte brutal banalizada por uma polícia que teima em fazer pouco caso das nossas dores, banalizada por uma imprensa que persiste em nos desrespeitar nos tratando no masculino, exibindo esse dado estapafúrdio que é nosso nome do RG (a razão social, ao invés do nome fantasia com que nos conhecem), banalizada por uma sociedade que segue nos culpando e desejando nosso extermínio pelo simples fato de não conseguirmos nos entender como homens só por termos nascido com pinto. 
Géia teve o fim de todas nós, mesmo evitando os caminhos que a maior parte de nós toma, o que mostra que pra essa sociedade transfóbica não importa nada do que sejamos capazes de fazer -- seremos culpadas sempre, sob ameaça garantida de pena de morte enquanto teimarmos em existir.
Por isso somos militantes obrigadas, mesmo sem o querer, mesmo quando queremos sossego. Existir não é fácil quando se é travesti.

PS: deixo abaixo algumas exceções boas que esse protesto gerou na mídia, a escrita sempre certeira e respeitosa de Neto Lucon, as fotos maravilhosas do Código 19, a redação oscilante mas já bastante mais respeitosa que o G1 nos concedeu (respeitando o gênero de Géia, mas ainda voluntariando essa coisa idiota do nome do RG).


sábado, 11 de outubro de 2014

Géia Borghi, uma estrela que cruzou meu destino

O cenário drag de Campinas pra mim é um lugar bastante novo. Apesar de eu já ser conhecida de um pequeno público, ainda não sou muito conhecida pelas demais artistas drags que colorem as noites e boates da cidade, tampouco sou conhecida pelo grande público que as segue.
Recentemente tenho tentado me inserir mais. Tenho participado de concursos na cidade e tentado me entrosar com algumas meninas. 
Pois.... foi em um desses concursos que conheci a Geia.
Ela fazia parte do jurado daquela noite. Lá do camarim, ouvi o nome dos presentes. Quando citaram que a Geia ali estava, fiquei emocionada em me apresentar pra ela, a referência das referências.
Cheguei na boate Subway bastante cansada, era meu terceiro show da noite. Tinha saído de casa às 2h30, depois de uma passagem meteórica como performer e apresentadora da festa do Babado, na Unicamp. A previsão para o início do concurso era 3h. Cheguei toda esbaforida no camarim faltando 5 minutos para tudo começar.
Entrei, fiz meu número. Era uma música meio dramática, melodiosa em espanhol. Senti que não havia alcançado a plateia. Acho que as pessoas esperavam uma música mais alegre ou uma maior empolgação da minha parte. Rompi as expectativas. Rompi também por um pequeno detalhe, o meu tamanho: não se espera que uma drag seja minúscula. Optei também por um figurino mais limpo: sem brilhos e nem pedras. Queria chamar a atenção para o glamour da simplicidade. Embora eu parecesse esplêndida pra mim, aparentasse latinidade, quase ninguém entendeu a minha proposta. Quebrei o clima completamente.
Fiquei bastante chateada por não ter dado conta do recado. Fui embora de ônibus, pensativa, sozinha, chateada. Dois dias depois, no meio do desânimo, a Geia me encontrou no site feices e me chamou para conversar. Ela disse que eu havia chamado a atenção dela. Fiquei bastante lisonjeada e o desânimo passou na hora. Daí, na lata, ela disse que eu deveria fazer Edith Piaf. Geia achava que Edith combinava mais com o meu corpo, por causa da nossa pequena estatura. Falou que me faltava direção e uma escolha mais adequada de repertório.
Ela também me deu conselhos: "Não seja mais uma drag comum. Seja vc, autêntica e com estilo próprio."



Tudo isso, eu gostei demais. Fiquei muito feliz, porque via nela uma mãe que não tive. E justo ela que fazia uma linha que me agrada demais. A nossa amizade estava apenas nascendo.
Num meio em que você leva alfinetada o tempo todo, num meio em que qualquer detalhe da sua maquiagem ou figurino é ridicularizado, num meio em que o corporativismo te impede o acesso aos palcos, num meio em que há muita rivalidade, eu via na Geia uma grande pessoa acolhedora. Ela não tinha nada a ganhar comigo, uma simples novata. Mas ela foi demais, me acolheu e me recebeu com conselhos preciosos. Falou o que eu tinha que escutar, fez sua crítica, deu suas sugestões. Passei a admirá-la ainda mais.
Isso tudo faz menos de 15 dias. Com seus quase 15 dias, o pequeno broto da nossa amizade foi dilacerado pelo ódio transfóbico de criminosos.



Em sua homenagem, dedico a canção de Piaf que havia gravado dias depois de seus conselhos.
Link da música: aqui


Querida Geia, aposto que você também não se arrepende de nada. Valeu a pena te encontrar, ainda que fosse por tão pouco tempo. Obrigado por ter cruzado meu destino.


P.S. > Pessoal, segunda-feira (13/10) é dia de luta. Estão todos convocados a comparecerem no ato contra esse brutal assassinato. A concentração vai ser no largo do Rosário, a partir das 17h. 

Link do evento: aqui



terça-feira, 7 de outubro de 2014

Indianara Siqueira: entrevista

Na nossa primeira entrevista gravada, conversamos com ela, uma das assessoras do deputado reeleito Jean Wyllys, a queridíssima Indianara Siqueira, que fez uma breve passagem pela cidade de Campinas.
Em outra ocasião tivemos a oportunidade de entrevistá-la também, mas foi só por escrito.
Se quiserem saber um pouco mais sobre ela, aconselho que leiam a entrevista antes de assistir o vídeo abaixo. É só clicar aqui.
Indianara veio participar da mesa de abertura da IX Semana Vegetariana da Unicamp.
Além de ser uma reconhecida militante em prol dos direitos humanos, Indianara, que é vegana, luta também pelos direitos animais. Em breve, lançaremos na página "E se eu fosse puta - Amara da depressão" a fala na íntegra de nossa amiga.
Depois das formalidades,  fomos para um bar e, em clima de bate papo, fizemos as mais variadas perguntas a Indianara.
Ela nos explicou sobre o movimento desaquenda, falou sobre prostituição e sobre a lei Gabriela Leite.
Se eu fosse você, não perderia nenhum minuto dessa entrevista.


Peço desculpas de antemão por causa do ruído de fundo, afinal estávamos num bar e não queríamos abrir mão das informalidades. Também não apareço montada nessa entrevista, pois não houve tempo. Ficamos sabendo da estada de Indianara em cima da hora.


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