sábado, 1 de fevereiro de 2014

Entrevista com Leila Dumaresq

Foto retirada do site do projeto Transversus
Na entrevista de hoje, vamos conhecer um pouquinho mais de Leila Dumaresq. Ela tem 36 anos de idade. É designer de jogos e formada em Filosofia. Recentemente participou do projeto Tranversus com seu depoimento sobre ser uma mulher trans. Tem um blog e uma página chamados "Transliteração". Fiquem com o carisma de Leila:


Jaqueline Furacão -  Leila, vi que vc está usando o nome de Lígia no Facebook? Parece que o Facebook te bloqueou com o nome de Leila. O que aconteceu? Conta um pouco pra gente como as políticas da rede social podem ser transfóbica.

Leila - O Facebook acatou uma denúncia de perfil falso contra mim. A denúncia foi anônima, a condenação foi sumária e minha única possibilidade de usar o perfil novamente foi mudar o nome para Lígia (que me veio à cabeça na hora). O problema é que para eu poder voltar a usar Leila, tenho que enviar meus documentos para que eles, segundo os termos que eles mesmos escreveram, imponham a mim o nome escrito no RG. É exatamente isso que eles dizem que vão fazer: Mudar o perfil e, junto, as minhas fotos marcadas, comentários, e até mudar a citação que outas pessoas fazem de mim. É bastante aterrorizante quando o nome civil está errado.
Muitas pessoas me tranquilizaram dizendo que o facebook “alivia” para pessoas transgêneras. Mas isso me incomoda também. Eu não quero que o facebook seja “bacana” comigo. Quero o mesmo direito de  uma pessoa cisgênera, só porque a constituição diz que minha imagem pública tem o mesmo valor que a de qualquer outro cidadão. Claro que ter o nome respeitado por quem quer que seja é mérito da pessoa ou organização. Neste caso, eu estou sofrendo discriminação institucional também.
Apesar de saber que o Facebook não está expondo pessoas trans, só pra garantir, vou renovar meus documentos para eu ter mais certeza que serei reconhecida como mulher transgênera. Porque a foto ao lado do nome no documento será a única informação atestando a condição. E eu fico com a dúvida: Que será que o funcionário da rede social verá em minha imagem quando deparado com o nome civil nos documentos?
Imagino que tudo terminará bem. Hoje, eu já conto essa história para conscientizar as pessoas de como sente-se uma pessoa socialmente vulnerável. Para que saibam quanta burocracia a mais eu enfrento e quanta coisa dada como garantida, no meu caso, depende de  arbitrariedade ou boa vontade.

Jaqueline Furacão -  Vc é filósofa e designer de jogos. Como vc concilia essas duas coisas?

Leila - Pra falar a verdade, eu nunca tentei conciliar. Quando eu estou procurando emprego escrevo que sou “generalista” no currículo, mas não tenho problema em dizer e ouvir que minha vida foi um tanto quanto errática.
Eu trabalhei com essas áreas porque eu sempre quis mexer com algo que me apaixonasse. E fui tão teimosa nesse propósito que me envolvi em duas áreas que não dão dinheiro com facilidade (não dá pra usar uma para financiar a outra). Hoje eu acho isso que fiz meio louco, mas não me arrependo porque também eu vejo que conquistei habilidades e sensibilidades que me ajudam a resistir, sobreviver e me desenvolver apesar das lutas sociais e políticas. No final das contas eu gosto de pensar no que está acontecendo comigo.

Jaqueline Furacão -  Quais são seus planos profissionais para o futuro?

Leila - É tudo muito novo para mim. Eu não trabalhava mais com games fazia cinco anos. Então eu fui chamada por um grande parceiro de volta à ativa em 2013. Isso trouxe novos contatos, oportunidades e dilemas. O mercado de games é hoje bastante competitivo e dinâmico, mas há espaço para gente independente como eu.
Pretendo comunicar-me mais com as pessoas: através de palestras, seminários ou cursos. Também pretendo lançar micro games, a menos que surja algum projeto maior para eu participar, mas isso depende de conversas que estão em andamento.
Há muitos projetos na verdade, mas eu gosto mesmo é de fazer surpresas.

Jaqueline Furacão -  Você toca uma página no Facebook e um blog, o Transliteração. Você os descreve como um blog de humor, crítica e escrita transgênera. Diante do humorismo atual, em que a transfobia rola solta, falta crítica e falta escrita transgênera. Vc acha que consegue fazer tudo isso, criticar e falar de transgeneridade sem perder o humor?

Leila - Quanto à crítica e à escrita, faço meu trabalho de formiguinha, não é? Dou minhas ideias e as deixo disponíveis para a comunidade aproveitar. Penso meu trabalho como contribuição. Escrevo para melhorar nosso repertório de ideias e argumentos. Não me foco em vencer a guerra. Só tento fazer a minha parte em cada batalha.
Eu participo também de grupos presenciais de apoio mútuo. Esse cotidiano ajuda a equilibrar a perspectiva macabra das estatísticas e lutas institucionais horrorosas. É fato que conseguimos ajudar as pessoas (pelo menos a sobreviver com mais dignidade). Isso é um ótimo remédio para enfrentar o horror institucional. Ter ajuda, também é importante. Por isso digo que faltam grupos de apoio e acolhimento no movimento. Precisamos muitos, para todas as pessoas unirem-se em torno deles e a partir deles enfrentar a barra pesadíssima de sobreviver.
Já diante do humorismo atual eu traço uma linha divisória. Me posiciono de um lado e ele do outro:
Os humoristas têm dito que eles fazem crítica de costumes. Eles mostrariam o ridículo e o absurdo do ser humano através de personas (ou personagens) que representam defeitos que as pessoas não querem ver nelas mesmas. Também afirmam que o humor se outorga liberdade total para criticar qualquer comportamento ou costume.
A princípio, nada alarmante. Apenas uma definição. O problema é o que eles fazem a partir daí: e o maior desserviço que essa “escola” de humor faz é nivelar privilegiados e oprimidos. No campo discursivo desse humor, oferecer uma banana a um negro é o mesmo que oferecer protetor solar fator mil à um branco. Assim, eles apagam a opressão histórica. Neste ponto, o princípio de que todos devem suportar crítica humorística dos costumes não faz distinção de valor entre a humilhação preconceituosa, a crítica do preconceituoso. São apenas conteúdos válidos de um repertório permitido.
Esse humor é colonizador. Ponto final. Não é mais a cansativa polêmica da liberdade de expressão  quando conseguimos apontar o que há de ofensivo e prejudicial neste humor. Infelizmente, a própria sociedade deveria regulá-lo, não aceitando esse tipo de trabalho. Por hora, o que posso fazer é apoiar todos os militantes que denunciam as formas desses abusos. Enquanto houver vozes da consciência social, há esperança.
Existe outro humor para eu usar? Principalmente, existe um que funcione diante do horror que é viver em um campo de extermínio de transgêneros como a sociedade brasileira? Um país que ceifou por ódio a vida de uma pessoa trans a cada três dias?
Claro que sim! E não preciso ir muito longe para citar minhas referências:
Primeiro, gostaria de citar a página do facebook Travesti Reflexiva. Elas são politicamente incorretas, provocadoras incontroláveis, não perdoam ninguém. Muito parecido com o que os humoristas mainstream fazem. E onde está a diferença? A proposta dessa página é justamente desconstruir o estereótipo negativo da travesti ao mesmo tempo que detonam e denunciam outros personagens e situações de opressão que elas sofrem. Eu diria que a liberdade de expressão no humor serve para proteger a mensagem desse pessoal e não os abusos que citei anteriormente.
Outra referência contemporânea é o George Takei. Ele foi o Capitão Sulu em Jornada nas estrelas. Usa sua fama e um incrível carisma para defender e divulgar a causa LGBT e a memória dos campos de concentração para japoneses (nos quais ele esteve, inclusive)  nos EUA. Quando o estado do Tennessee criou uma lei absurda proibindo a palavra 'gay' nas escolas ele fez uma campanha pública para que as pessoas usassem seu nome no lugar da palavra 'gay'. Ficou muito engraçado, porque as pessoas falavam: “É OK ser Takei” como forma de resistência pacífica.
Há também o Charles Chaplin, que só para citar um caso, filmou o Tempos Modernos: fazendo um pastelão, ele mostrou claramente como a revolução industrial desumanizava os trabalhadores. Contraponha isso a qualquer comédia moderna, que mostra sem parar “pessoas atrapalhadas” que superam “seus defeitos” nas mais diversas situações.
E quero terminar a lista com os Doutores da Alegria e o Patch Adams (o verdadeiro, procure a entrevista no Roda Viva). Eles mostram claramente um tipo muito sutil, delicado e ao mesmo tempo poderoso de humor.
Com eles eu aprendi que a alegria, por ser uma emoção contagiante, tem o poder de espantar o horror dos nossos corações. É uma ferramenta de coragem e resiliência diante do medo. Porém, esse mesmo efeito pode ser um instrumento de banalização do mal, fazendo com que as pessoas riam ao invés de horrorizar-se diante de certas situações.
Eu sou contra o uso colonizador e deslegitimador de identidades oprimidas e odiadas. Acho que a linha que separa um tipo do outro é bem clara.

Jaqueline Furacão -  Os encontros trans que acontecem no Centro de Referência LGBT de Campinas, dos quais vc participa, são bem diferentes dos espaços acadêmicos que debatem transgeneridade. Quais as diferenças entre eles que fazem com que vc frequente os dois espaços?

Leila - Em primeiro lugar, todas as vozes têm o mesmo peso. O que às vezes causa uns problemas de entendimento, mas essa igualdade mostrou-se riquíssima. Minha sorte foi chegar completamente destruída pelo cistema. Chegasse eu lá com um pouco mais de identificação com meus privilégios acadêmicos, talvez fosse outra pessoa, muito mais chata na minha opinião. Porém (sorte minha, sempre vou ser grata), eu cheguei lá terraplanada pelo cistema porque o jogo dele é feito para nós perdermos sempre. E justamente minha educação formal, da escolinha até a universidade me ensinou a seguir as regras. Devia ter um jeito de vencer, mas no jogo da opressão não há. Então eu já não acreditava em nada que havia aprendido naquele momento.
Nesse clima que fui lá e ouvi. Aquelas mulheres trans me acolheram e ensinaram a ser mulher como elas. Como disse, eu queria aprender. E elas me ensinaram.
E aconteceu algo mágico disso: eu adquiri uma autêntica cultura feminina com elas. Um ser mulher codificado em gestos, relações com roupas, cosméticos, corpo, significações e símbolos. Inclusive, essa cultura me deu elementos intuitivos para lidar com a identidade e alteridade do feminino cis e trans. É um grupo bastante diverso quando cheguei nele. Ainda é bastante identificado com a transexualidade, mas não é exclusivo de mulheres trans.
Eu também fui usuária do CR e tive contato com diversas mulheres trans que não frequentavam o grupo. As conversas com todas elas também me ajudaram a construir a mulher que sou. E nada disso passava diretamente pelo discurso político ou acadêmico. São um pequeno patrimônio cultural imaterial que herdei da comunidade de mulheres trans de Campinas que por qualquer motivo frequentam o CR: é o que entendem por ser mulher trans donas de casa, prostitutas, cabeleireiras, operadoras de telemarketing, vendedoras, moradoras de rua, estudantes, modelos.
Claro que eu faço isso do meu jeito. Hoje entendo como um elemento interseccional da minha identidade, mas é um muito precioso. Ele codifica minha existência e meu lugar no mundo. Um lugar concreto, entre pessoas, localizado temporal e geograficamente.
Isso tem uma consequência muito intensa e bonita na minha relação com outros grupos aos quais eu também pertenço: eu me sinto  deslocada de alguns discursos acadêmicos ou políticos. Esses signos indômitos que eu trago nem sempre são bem expressos nos termos dos discursos políticos ou acadêmicos. Por mais corretos que sejam os discursos institucionais, eu não quero abrir mão da minha própria vivência.
Começo a perceber que não estamos dando conta destes que chamo signos indômitos. São sutis, transmitidos por vivência, são em parte verbais, em parte comportamentais, mas definitivamente são identitários. São culturais. Eu diria que a maior parte das minhas discordâncias dentro do movimento online e de certos estranhamentos  e desentendimentos são um fruto interessante dos meus signos indômitos e meu treinamento discursivo acadêmico.
Eu falava como brincadeira que era a filósofa transgênera da região entre a rodoviária e a prefeitura de Campinas. Pelo visto, o fundo de verdade dessa brincadeira é tão profundo e rico que pode conter a chave para apaziguar discussões e unir grupos de pessoas transgêneras Brasil afora. Precisamos levar mais a sério para o fato que grupos identitários isolados produzem identidades diferentes e autênticas. E cada uma dessas contém experiências de resistência únicas, que nem sempre serão codificadas por um discurso político ou acadêmico. Hoje estou despertando para o fato que esse “ruído” em nossas discussões pode tornar-se um grande coro, em que cada voz traz uma história diferente de sobrevivência, superação e resistência.

Jaqueline Furacão -  Por que o dia da visibildiade trans é importante?

Leila - A compaixão é uma questão humana essencial. Toda opressão é baseada em retirar a compaixão de uma parcela da população. É a naturalização da condição subumana.
Além disso, para submeterem-se de livre e espontânea vontade, as pessoas precisam ter medo, muito medo. Aí que entra o discurso de ódio. Eu poderia listar uma lista enorme de opressões. Todas funcionam assim e todas têm um interesse muito específico de controle social.
No caso das pessoas transgêneras, as regras que quebramos violam o estado de terror a respeito da agência individual sobre os corpos. O espantoso é como pessoas conseguem viver um roteiro sempre igual a respeito dos seus corpos e vivências e nunca perguntarem-se sobre o que estão fazendo de suas vidas, se não há outras formas de organização social que lhes permitira explorar mais e melhor suas potencialidades no tempo de suas vidas, se não há um estado corporal mais interessante. É absurdo que as pessoas não se questionem. Só é cômodo não se questionar, mas de modo algum isso é bom. As pessoas sofrem e pensam que tem que ser assim mesmo.

Temos que ter um espírito mais explorador. “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Há ousadias muito necessárias. Admiramos do modo errado esses heróis das histórias. Esse “mais do mesmo” só interessa aos pouquíssimos que estão ganhando muito com isso.

Um comentário:

  1. Mais um show de lucidez dessa amiga tão querida e especial que é Leila Dumaresq! Que sua serenidade e sabedoria contagiem o mundo numa epidemia pra lá de saramaguiana!

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