segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Entrevista com Viviane V.

Na entrevista de hoje, vcs vão conhecer um pouco mais sobre Viviane V., Vivi para os íntimos. Ela mora em Salvador, é formada em Ciências Econômicas pela Unicamp. Atualmente faz mestrado em Cultura e Sociedade na Ufba e é conhecida pelo seu enfrentamento acadêmico à norma cisgênera cientificista.



Jaqueline Furacão - To curiosa pra saber como foi a sua última viagem para a Alemanha. O que você encontrou por lá? Aproveitando, conta também de sua experiência no Canadá. Essas viagens tem sido importantes para a sua reflexão?

Vivi - Minha viagem a Berlim foi extremamente positiva... fui convidada para integrar um evento que reuniu ativistas trans* de diferentes regiões do mundo e representantes de entidades que financiam projetos em justiça social. Eu participei como alguém que ajudou na organização do evento, tendo também moderado uma das apresentações, sobre Gênero e Diversidade Cultural.
Foi um evento muito interessante, onde pude conhecer melhor o contexto global das lutas e resistências trans* pelo mundo, e dos precários recursos com que, no geral, lutamos – uma das mensagens principais do encontro foi justamente o subfinanciamento de projetos em questões trans* pelo mundo. Outro elemento interessante foi este contato com este ambiente de financiamentos, projetos e ativismos: como acadêmica, meu contato com estes debates não é tão frequente, e considerei interessante ver como uma linguagem quase corporativa se desenvolve nestes meios, bem como a reprodução de dinâmicas sul-norte de poder. Felizmente, este foi um evento em que vozes críticas puderam problematizar algumas destas questões, e o diálogo entre ativistas e entidades de financiamento me pareceu bem positivo – apesar do cenário geral grave.
Durante esta viagem, também tive a oportunidade de conhecer novos contatos e afetos em Barcelona, onde passei alguns dias. Pude pensar em outras possibilidades de ação política trans*, bem como me contentar ao ver o quanto intersecionalidade e questões trans* estão presentes em tantos debates críticos nos estudos sociais – ainda que haja problematizações de variados graus a se fazer, ali. Foram dias intensos, de ruas a pé, de encontros e ideias com pessoas pensando outras formas de viver – e outras, em diversas dimensões e perspectivas –, de realidades imigrantes e precárias, de vidas. Ainda estou me sentindo em processo de absorção das vivências que lá aconteceram.
Sobre o Canadá... entre 2007 e 2011, tive a oportunidade de viver em Toronto, Ontário, ao leste do país. Sem dúvidas, este foi um período muito intenso em reflexões de gênero, mesmo que de forma menos explícita que esta viagem mais recente a Alemanha e Espanha: foi durante estes anos que pude vivenciar meu gênero inconforme e começar a ler sobre questões trans* para além das perspectivas colonialistas sobre nós. Não seria um grande exagero dizer que viviane nasceu lá no Canadá, onde iniciei diversas experimentações e práticas generificadas, como a depilação, maquiagem, vivência social feminina trans*, entre outras. É um período muito especial de minha vida.

Jaqueline Furacão - Falando de academia, conta um pouco pra gente sobre as polêmicas com o "pessoal da teoria queer".

Vivi - É importante ressaltar que não há 'um pessoal da teoria queer', em primeiro lugar. Há um grupo de pessoas que é reconhecido como tal 'pessoal', mas – e espero que estas pessoas, inclusive, concordem comigo nisto – há uma diversidade de pessoas pensando a partir dos estudos queer, com diferentes propósitos, e pensar em termos de alguma 'filiação' (tal qual 'o pessoal da teoria queer') seria redutor das potências destes estudos para pensar gêneros, sexualidades e outras questões.
Há algumas 'polêmicas' que aconteceram mais diretamente comigo, e eu as sumarizaria em 2 aspectos: (1) o menosprezo intelectual em relação às perspectivas políticas de pessoas trans*, algo que ilustro através de como percebo a aceitação acadêmica da categoria analitica de cisgeneridade; e (2) as dinâmicas de poder e ego que regem parte do campo mais ligado aos estudos queer no Brasil (algo particularmente problemático neste campo de estudos, criticamente antihierárquico).
O primeiro elemento, que eu caracterizo a partir de uma leitura anticolonial, tem a ver com os processos de silenciamento e marginalização por que propostas e leituras críticas realizadas por pessoas trans* passam. É assim que compreendo as suspeitas de que, por exemplo, falar em cisgeneridade e em pessoas cis seria 'criar um novo binário', ignorando que algumas das pessoas que utilizam estes termos estão se inspirando em leituras que desconstroem qualquer idealização destas categorias como perfeitamente estanques e binárias com fronteiras bem definidas. Trata-se de inferiorização intelectual, imaginar que pessoas trans* não estejam cientes dos debates sobre identidades e processos de subjetivação que acontecem nos estudos queer e pós-coloniais.
A proposta da cisgeneridade como conceito, enfim, é muito semelhante às propostas de se problematizar normatividades e posições normativas como as da heterossexualidade e branquitude: nomear o que antes era tido como 'normal', 'biológico' ou 'de verdade' significa deslocar a normatividade, e não necessariamente (re)criar algum outro binário. Alguns dos problemas que aconteceram com pessoas acadêmicas foram justamente neste sentido: para quem sempre se sentiu confortável em opor pessoas trans* a pessoas 'biológicas', 'de verdade', 'naturais', etc. (a criatividade terminológica é considerável), era curioso, em minha percepção, notar as problematizações – suposições de que 'cis' inauguraria e reificaria algum binário, 'nem todo mundo é 100% cis', ... – que foram sendo feitas em relação a um substituto possível para tais categorias colonialistas e inferiorizantes, a cisgeneridade.
O segundo elemento, por sua vez, é mais relacionado a lamentáveis dinâmicas políticas de poder nos meios acadêmicos, frequentemente pautadas por egos de dimensões consideráveis, perspectivas acríticas desde um ponto de vista intersecional (o que favorece marginalizações e exclusões nestes ambientes de pesquisa, em uma perspectiva micropolítica), eurocentrismos, classismos, etc. Neste sentido, fiquei profundamente frustrada ao notar que algumas de minhas críticas incisivas eram vistas como algo agressivo, quando não como devaneios que não valeriam a pena um debate: é assim que fui convidada a me retirar de um projeto sobre pessoas trans* em Salvador, é assim que se 'compreenderam' algumas de minhas críticas a instâncias ocorridas no Seminário Desfazendo Gênero de 2013, é assim que vão se expressando desinteresses em questões trans*, transfeministas, e em meu projeto de estudos. E é particularmente triste que isto aconteça em âmbitos mais relacionados aos estudos queer, que têm diálogos constantes com críticas incisivas às hierarquias do saber, e que vem tentando trazer perspectivas intersecionais importantes em outros contextos para se pensar para além de gêneros e sexualidades.

Jaqueline Furacão - E a sua vida amorosa? Vc é uma adepta do poliamor?

Vivi - Bom, minha vida amorosa é feita de todas as amizades, solidariedades e afetos que trazem boas energias para seguir rexistindo. E, nesse sentido, felizmente tenho tido muitas alegrias, muito além do que eu poderia imaginar, dado este nosso contexto histórico profundamente cissexista/transfóbico. Evidentemente, também não posso deixar de fazer uma leitura crítica disto, avaliando o quanto outras de minhas posições sociais privilegiadas dialogam com estas possibilidades de relações positivas.
Eu não sei se gosto de utilizar os termos 'adepta' e 'poliamor', necessariamente, até mesmo por não ter muita familiaridade com as terminologias de um ponto de vista político. Acredito, sim, na ideia de que há uma normatividade monogâmica em boa parte das sociedades contemporâneas, e que tal normatividade deve ser desconstruída.
De um ponto de vista mais pessoal, gosto de imaginar que as pessoas com quem me relacione possam eventualmente constituir uma rede de afetividades e sexualidades livres, de acordo com seus desejos e perspectivas de vida. Incluindo-se, aí, a possibilidade de que haja, também, relacionamentos monogâmicos não normativos dentro destas redes.
Bem, algumas análises pessoais, rs. Amo várias pessoas, e me sinto muito bem por amá-las, a cada uma delas. Estes amores têm sido uma das minhas forças mais importantes e bonitas, apesar de eu às vezes ter dificuldades de expressar minha gratidão e felicidade a elas. A uma destas pessoas, tenho amado de uma forma especial (e confusa), mas seria deselegante nomeá-la, aqui – sem contar, ainda, que em um contexto mononormativo, as formas de compreensão do que signifique amar de diversas formas sejam demasiado limitadas. Sonho com o dia em que, existencialmente, tenhamos repensado nossas formas de relacionamento amorosos (e não me restrinjo ao considerar que formas sejam essas), de maneira a desconstruir e desaprender determinadas relações de poder e individualismos, e que os amores possam flutuar ao sabor do vento de desejos solidários e construtivos, inclusive sem negar a possibilidade de que haja momentos de estabilidade amorosa agenciada. Neste sentido, por exemplo, é que penso que alguns arranjos monogâmicos poderiam ser interessantes para mim, em determinados contextos.

Jaqueline Furacão - Por ser uma mulher trans*, você já teve problemas familiares e problemas para conseguir emprego?

Vivi - Sim, houve alguns problemas e atritos com pessoas familiares e amigas após minha autoidentificação enquanto mulher trans*. Bem aos poucos, alguns destes problemas têm se resolvido, e outros não; algumas relações foram cortadas, outras fortalecidas, e sem dúvidas minha identidade de gênero foi um elemento importante para se analisarem as mudanças recentes nestas relações interpessoais.
De um ponto de vista profissional, também houve problemas, apesar de minha posição privilegiada em termos de acesso a recursos educacionais e profissionais. Atualmente cursando o mestrado sem bolsa de pesquisa, tem sido complicado procurar por trabalho em minha área de formação e atuação anterior (ciências econômicas e auditoria interna) – seja por cissexismos institucionais ou pela insegurança decorrente deles –, e quando consegui um trabalho aquém de minhas qualificações, não houve a possibilidade de desempenhar meu trabalho utilizando-me de minha autoidentificação enquanto mulher.

Jaqueline Furacão - Por que um dia da visibilidade trans* é importante?

Vivi - Vou utilizar a definição que li em uma das postagens da blogagem coletiva para o Dia da Visibilidade Trans*: ele “existe para dar voz, identidade e cidadania às pessoas trans*, que vem a ser pessoas transexuais, transgêneros, travestis ou outras que não se identificam com a ideia normativa que temos de “masculino” e “feminino”.”
Neste sentido, acredito que este dia de celebração e luta carregue consigo uma potência bastante significativa. Mas precisamos sempre estar criticamente atentas, enquanto pessoas trans* e aliadas, para que este dia signifique descolonização, e não apropriação cistêmica para fingir que as coisas estão melhorando e o mundo é legal. Porque não é. 

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