quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Entrevista com Bia Bagagli

E na entrevista de hoje, em homenagem ao dia da visibilidade trans*, vamos falar com Beatriz Bagagli, mais conhecida como Bia. Ela é estudante de Letras e pesquisa na área de Análise do Discurso. É uma militante do transfeminismo e co-administradora do mesmo grupo no Facebook. Pra quem não sabe, a Bia é minha amiga de longa data e a gente mora juntas há quase 2 anos. Hoje vcs vão saber um pouco mais dessa menina espetacular.

Jaqueline Furacão -  Bia, vc foi a primeira a pedir o uso do nome social na Unicamp, conta pra gente como foi esse processo?

Bia - Demorou um pouco, já que ninguém tinha pedido antes o uso do nome social na Unicamp inteira (isso mostra como pessoas trans* estão longe desses espaços). Acho interessante apontar como as pessoas estão despreparadas com essa demanda. Boa parte das pessoas (incluindo as que lidam diretamente com a burocracia) nem ao menos sabe o que é nome social. Então é um eterno estado de ter que se “explicar”, explicar que sou (e o que é) uma pessoa trans*. Isso é desgastante, mas estou acostumada relativamente. Vale a pena ressaltar que o respeito ao nome social não se deu por um respeito às identidades de forma abstrata e descompromissada, a Unicamp só acatou porque foi obrigada pelo decreto estadual nº 55.588, que determina não apenas o uso do nome social, mas também estipula pena pelo descumprimento do uso, de acordo com a lei 10.948. Ou seja, nem ao menos basta ter normas baseadas na “boa civilidade”, é preciso falar em punições institucionais. Também tenho que dizer que podemos acreditar um pouco nas pessoas: a ouvidoria (órgão que definitivamente conseguiu me ouvir e encaminhar concretamente a demanda) foi atenciosa e prestativa comigo, assim como o diretor acadêmico.  Depois desse precedente, qualquer pessoa pôde solicitar, através de um formulário no site da DAC, sem a exigência de nenhuma “prova”, o uso do nome social na Unicamp. Por fim, importante falar que política de nome social é uma medida paliativa e precária: precisamos do reconhecimento de nossos nomes nos documentos oficiais, assim como a aprovação de uma lei (como o projeto de lei João Nery) que determine isso.

Jaqueline Furacão - Vc está lutando para conseguir alterar seus documentos na justiça também. Fale um pouco das dificuldades encontradas.

Bia - São várias, mas tenho que reconhecer meus inúmeros privilégios neste caso. Primeiro existe a dificuldade de acessar cidadania que é comum a todas as pessoas trans*. O modelo de “cidadania” nesta sociedade para pessoas trans* é precário e autorizativo, ou seja, irá depender de quantas “provas” cissexistas eu conseguir juntar, como laudos médicos e psicológicos e, em última instância, da boa vontade do juiz (já que é necessário entrar com um processo judicial). Mas é então que meus privilégios de classe, raça, passabilidade cis e aceitação dos meus pais entram em jogo. Eu tive o privilégio de contratar um advogado particular e me consultar com um psiquiatra particular para conseguir o maldito laudo. Certamente é uma minoria de pessoas trans* que conseguiria essas mesmas coisas, mostrando como diversas formas de opressão se interseccionam com a transfobia.

Jaqueline Furacão - A academia é bastante cissexista. O que você teria para falar sobre as pesquisas feitas sobre pessoas transgêneras?

Bia - Sim, de fato. Primeiro é só dar uma olhada pra quem compõe os espaços acadêmicos. Depois, observar quais são os sujeitos que estudam a transgeneridade. Iremos concluir que pessoas cis historicamente são as que estudam as pessoas trans* e pessoas trans* raramente são sujeitos do próprio discurso. Essa dinâmica vai consolidar uma estrutura na qual uma imagem se reproduz: a pessoa cisgênera enquanto pesquisadora-antropóloga e a pessoa trans* enquanto “povo distante” que irá fornecer dados para x pesquisadorx. Não quero dizer com isso que todas as pessoas cis pesquisadoras sobre transgeneridade são colonizadoras ou cissexistas. Pelo contrário, temos vários nomes como Berenice Bento, Larissa Pelúcio e Jorge Leite Júnior que são pessoas cis que produzem conhecimento que denuncia as relações transfóbicas. No entanto, é necessário mais, é necessário também que tenhamos grandes nomes de pessoas trans* enquanto autorxs. Acredito que isso está surgindo, aos poucos, agora. Também, pelo que ando percebendo, é necessário que um transfeminismo feito por pessoas trans* “invada” a academia e isso irá significar no uso do conceito analítico “cisgênero”. Pode parecer exagero, mas o uso desse termo vai fazer uma espécie de recorte epistemológico, marcando um “antes” e “depois”. E vejo o uso de cisgênero como uma forma necessária de resistência feita pelas pessoas trans*, tanto é que os autores cisgêneros que estudam transgeneridade (incluindo os citados acima) não chegam a usá-lo.

Jaqueline Furacão - Como é para você ser amiga e dividir casa com a Jaqueline Furacão? Conte pro pessoal sobre a nossa relação de amizade.

Bia - É uma delícia conviver com a Jaque! Me sinto privilegiada por conseguir morar, depois que sai de casa dos meus pais para estudar na Unicamp, em uma casa na qual eu pude desenvolver uma relação que vá muito além das necessidades básicas de um mero alojamento. É ter, literalmente, uma segunda família. E isso foi especialmente importante pra mim, em um momento delicado e fragilizado em que eu estava vivendo, esse momento em que sentia a abjeção na pele por estar transicionando. Por isso morar com a Jaque foi fundamental para mim, para ter um espaço seguro recheado de discussões, as mais variadas e ricas possíveis, e de amizade.

[Comentário da Jaque: <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3]

Jaqueline Furacão - Por que o dia da visibilidade trans é importante?


Bia - É importante pra população cisgênera saber dos seres abjetos que eles mesmos, através dos mais sutis até os mais violentos dispositivos, marginalizaram. E denunciar esses dispositivos, que se mostram como se fossem inexistentes. Mas não apenas isso, também é uma via de mão dupla: é pra pessoas cis saberem que são cis. Estou cada dia mais afeita a pensar a visibilidade trans* enquanto visibilidade cisgênera. Isso porque o termo cisgênero torna possível diversos deslocamentos de sentidos. Afinal de contas, só iremos saber quem são as pessoas trans* se soubermos quem são as pessoas cisgêneras. Estaremos deslocando a forma de ver as pessoas cis quando as designamos como cis ao invés de outros termos naturalizantes e biologizantes. É através do reconhecimento da alteridade do outro que vamos conseguir tornar as pessoas trans* humanas, e o uso do termo cisgênero me parece essencial nesse sentido.

7 comentários:

  1. Mas é evidente que são necessárias provas para mudar o nome nos documentos. Ora essa, até a mais inocente das cabeças sabe que isso é imprescindível para se ter um mínimo de segurança jurídica. Uma pessoa que vá mudar de nome por qualquer outro motivo passa pelos mesmos trâmites. Isso não é cissexismo, é só um mínimo de razoabilidade mesmo. As pessoas, juridicamente, são cissexuais até que se prove o contrário. Ou você sugere que seja o inverso? Vamos dar os nomes trocados? Deixar o nome do bebê em aberto? Já sei: abolir estes nomes opressores e nomear as crianças Marianx, Julianx, Patrícix, e assim por diante.
    É um privilégio de raça contratar advogado particular? Em um país cujo presidente da mais alta instância do poder judiciário é negro, esse tipo de comentário beira a completa alienação ou demência.
    Que generosidade a sua ao atribuir à “população cisgênera” como um todo a culpa pela marginalização dos trans. Além disso, me escapa à compreensão por que você chamou os transgêneros de “seres abjetos” - se por ironia mal construída ou ato falho.
    Ademais, o correto na penúltima frase é “em vez de”, não “ao invés de”. Espero que o curso de Letras lhe ajude a saber usar os recursos da nossa língua. Sucesso!

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  2. Aqui é a Bia. Diego C., é evidente que você não tem a menor ideia da dimensão da opressão transfóbica em nossa sociedade. Primeiro, a exigência de laudo médicos e psicológicos não são para uma suposta segurança jurídica, mas sim para exercer um controle biopolítico de corpos e identidades trans*. A segurança jurídica já é mantida pela exigência de certidões negativas na justiça criminal. Quando se exige laudo (e olha, não é apenas laudo, no caso da Daniela Andrade, exigiram inclusive "provas" de aparência feminina) se está destituindo a auto identificação das pessoas. Precisamos de uma lei de identidade de gênero, assim como da Argentina. Veja só, na Argentina é respeitada a identificação das pessoas trans e o mundo não parou por lá. Nada aconteceu, apenas os direitos civis das pessoas trans* foram respeitados. Vale ressaltar que na conjuntura brasileira, os laudos são sempre necessários, mas não suficientes para que se tenha certeza que o processo judicial de fato as contemplem. Em última instância, é decisão do juiz, e como o juiz pode ser transfóbico... já viu né.

    Você também não tem a menor ideia de como racismo se intersecciona com a questão de classe. Quem são as travestis que mais morrem, que tem que se prostituirem? Quem são as travestis que não obtêm acesso a cuidados básicos de saúde e que por isso não conseguem sonhar com a possibilidade de obterem o laudo? São travestis pobres negras e prostitutas.

    Sim, é a população cisgênera que se beneficia do sistema estrutual cissexista. É difícil aceitar isso enquanto pessoa cisgênero. Eu te entendo. Homens brancos cis heteros de classe média tem sempre resistências maiores nesse sentido. (Não estou dizendo que você tenha todos esses atributos, só pra adiantar uma eventual resposta).

    Sobre a sua concepção de gramática normativa, realmente, obrigada pela correção. No meu curso de letras aprendemos muito mais do que regras gramaticais. Aprendemos sobre preconceito linguístico e mitos do letramento, que, aliás, criticam justamente essa concepção normativa acerca da língua.

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  3. parabéns pelo blog, Jaqueline! adorei a entrevista, Bia! bastante esclarecedora, acho super importantes inciativas como esta... e ainda: admirei toda a sua classe ao responder o comentário do sujeito logo aí a cima - de propósito, só pra ver se ele me corrige rsrsrs tem uma galera que baba como um cão brabo ao ver "erros" de gramática :-)

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  4. Pelo comentário do do Diego, fica-se pensando que se um negro consegue galgar posições toda a população negra conseguiu. Boas piadas e, realmente, o Diego está bem longe de número s e estatísticas em relação ao uso de advogados pelos negros e pelos pobres de maneira geral e, para piorar, parece não saber nada a respeito de preços judiciais e custas processuais. O Diego utilizou a palavra "alienada" para referir-se a Bia, mas desconhece lamentavelmente, todo e qualquer número sobre o país e não sabe o que significa um negro apenas ter conseguido. Qualquer mirada breve nos números sociais, mostra que "alienado" realmente parece o Diego. Recomenda-se urgente olhada e estudo, se possível, dos números do IBGE, pelo menos e nem precisaria tanto esforço, mas nos números do CNJ fariam um estrago em seu comentário lamentável.

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  5. Muito legal o blog, muito legal a entrevista. Parabéns

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  6. Diego, quando há uma argumentação falha como a sua, é melhor que a lapide com conhecimento, dados, informação e um pouco de bom senso antes de expressá-la. Bia, parabéns pelo discurso. É maravilhoso ver uma militante trans conseguindo fazer a diferença nos espaços que ocupa. Me sinto ainda mais orgulhosa por ser trans em momentos como esse.

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