Na entrevista de hoje, vcs vão
conhecer um pouco mais sobre Viviane V., Vivi para os íntimos. Ela mora em
Salvador, é formada em Ciências Econômicas pela Unicamp. Atualmente faz
mestrado em Cultura e Sociedade na Ufba e é conhecida pelo seu enfrentamento acadêmico
à norma cisgênera cientificista.
Jaqueline Furacão - To curiosa pra saber como foi
a sua última viagem para a Alemanha. O que você encontrou por lá? Aproveitando,
conta também de sua experiência no Canadá. Essas viagens tem sido importantes
para a sua reflexão?
Vivi - Minha viagem a Berlim foi
extremamente positiva... fui convidada para integrar um evento que reuniu
ativistas trans* de diferentes regiões do mundo e representantes de entidades
que financiam projetos em justiça social. Eu participei como alguém que ajudou na
organização do evento, tendo também moderado uma das apresentações, sobre
Gênero e Diversidade Cultural.
Foi um evento muito interessante,
onde pude conhecer melhor o contexto global das lutas e resistências trans*
pelo mundo, e dos precários recursos com que, no geral, lutamos – uma das
mensagens principais do encontro foi justamente o subfinanciamento de projetos
em questões trans* pelo mundo. Outro elemento interessante foi este contato com
este ambiente de financiamentos, projetos e ativismos: como acadêmica, meu
contato com estes debates não é tão frequente, e considerei interessante ver
como uma linguagem quase corporativa se desenvolve nestes meios, bem como a
reprodução de dinâmicas sul-norte de poder. Felizmente, este foi um evento em
que vozes críticas puderam problematizar algumas destas questões, e o diálogo
entre ativistas e entidades de financiamento me pareceu bem positivo – apesar
do cenário geral grave.
Durante esta viagem, também tive
a oportunidade de conhecer novos contatos e afetos em Barcelona, onde passei
alguns dias. Pude pensar em outras possibilidades de ação política trans*, bem
como me contentar ao ver o quanto intersecionalidade e questões trans* estão
presentes em tantos debates críticos nos estudos sociais – ainda que haja problematizações
de variados graus a se fazer, ali. Foram dias intensos, de ruas a pé, de
encontros e ideias com pessoas pensando outras formas de viver – e outras, em
diversas dimensões e perspectivas –, de realidades imigrantes e precárias, de
vidas. Ainda estou me sentindo em processo de absorção das vivências que lá
aconteceram.
Sobre o Canadá... entre 2007 e
2011, tive a oportunidade de viver em Toronto, Ontário, ao leste do país. Sem
dúvidas, este foi um período muito intenso em reflexões de gênero, mesmo que de
forma menos explícita que esta viagem mais recente a Alemanha e Espanha: foi
durante estes anos que pude vivenciar meu gênero inconforme e começar a ler
sobre questões trans* para além das perspectivas colonialistas sobre nós. Não
seria um grande exagero dizer que viviane nasceu lá no Canadá, onde iniciei
diversas experimentações e práticas generificadas, como a depilação, maquiagem,
vivência social feminina trans*, entre outras. É um período muito especial de
minha vida.
Jaqueline Furacão - Falando de academia, conta um
pouco pra gente sobre as polêmicas com o "pessoal da teoria queer".
Vivi - É importante ressaltar que não há
'um pessoal da teoria queer', em primeiro lugar. Há um grupo de pessoas que é
reconhecido como tal 'pessoal', mas – e espero que estas pessoas, inclusive,
concordem comigo nisto – há uma diversidade de pessoas pensando a partir dos
estudos queer, com diferentes propósitos, e pensar em termos de alguma
'filiação' (tal qual 'o pessoal da teoria queer') seria redutor das potências
destes estudos para pensar gêneros, sexualidades e outras questões.
Há algumas 'polêmicas' que
aconteceram mais diretamente comigo, e eu as sumarizaria em 2 aspectos: (1) o
menosprezo intelectual em relação às perspectivas políticas de pessoas trans*,
algo que ilustro através de como percebo a aceitação acadêmica da categoria
analitica de cisgeneridade; e (2) as dinâmicas de poder e ego que regem parte
do campo mais ligado aos estudos queer no Brasil (algo particularmente
problemático neste campo de estudos, criticamente antihierárquico).
O primeiro elemento, que eu
caracterizo a partir de uma leitura anticolonial, tem a ver com os processos de
silenciamento e marginalização por que propostas e leituras críticas realizadas
por pessoas trans* passam. É assim que compreendo as suspeitas de que, por
exemplo, falar em cisgeneridade e em pessoas cis seria 'criar um novo binário',
ignorando que algumas das pessoas que utilizam estes termos estão se inspirando
em leituras que desconstroem qualquer idealização destas categorias como perfeitamente
estanques e binárias com fronteiras bem definidas. Trata-se de inferiorização
intelectual, imaginar que pessoas trans* não estejam cientes dos debates sobre
identidades e processos de subjetivação que acontecem nos estudos queer e
pós-coloniais.
A proposta da cisgeneridade como
conceito, enfim, é muito semelhante às propostas de se problematizar
normatividades e posições normativas como as da heterossexualidade e
branquitude: nomear o que antes era tido como 'normal', 'biológico' ou 'de
verdade' significa deslocar a normatividade, e não necessariamente (re)criar
algum outro binário. Alguns dos problemas que aconteceram com pessoas
acadêmicas foram justamente neste sentido: para quem sempre se sentiu
confortável em opor pessoas trans* a pessoas 'biológicas', 'de verdade',
'naturais', etc. (a criatividade terminológica é considerável), era curioso, em
minha percepção, notar as problematizações – suposições de que 'cis'
inauguraria e reificaria algum binário, 'nem todo mundo é 100% cis', ... – que
foram sendo feitas em relação a um substituto possível para tais categorias
colonialistas e inferiorizantes, a cisgeneridade.
O segundo elemento, por sua vez,
é mais relacionado a lamentáveis dinâmicas políticas de poder nos meios
acadêmicos, frequentemente pautadas por egos de dimensões consideráveis,
perspectivas acríticas desde um ponto de vista intersecional (o que favorece
marginalizações e exclusões nestes ambientes de pesquisa, em uma perspectiva
micropolítica), eurocentrismos, classismos, etc. Neste sentido, fiquei
profundamente frustrada ao notar que algumas de minhas críticas incisivas eram
vistas como algo agressivo, quando não como devaneios que não valeriam a pena
um debate: é assim que fui convidada a me retirar de um projeto sobre pessoas
trans* em Salvador, é assim que se 'compreenderam' algumas de minhas críticas a
instâncias ocorridas no Seminário Desfazendo Gênero de 2013, é assim que vão se
expressando desinteresses em questões trans*, transfeministas, e em meu projeto
de estudos. E é particularmente triste que isto aconteça em âmbitos mais
relacionados aos estudos queer, que têm diálogos constantes com críticas
incisivas às hierarquias do saber, e que vem tentando trazer perspectivas
intersecionais importantes em outros contextos para se pensar para além de
gêneros e sexualidades.
Jaqueline Furacão - E a sua vida amorosa? Vc é uma
adepta do poliamor?
Vivi - Bom, minha vida amorosa é feita
de todas as amizades, solidariedades e afetos que trazem boas energias para
seguir rexistindo. E, nesse sentido, felizmente tenho tido muitas alegrias,
muito além do que eu poderia imaginar, dado este nosso contexto histórico
profundamente cissexista/transfóbico. Evidentemente, também não posso deixar de
fazer uma leitura crítica disto, avaliando o quanto outras de minhas posições
sociais privilegiadas dialogam com estas possibilidades de relações positivas.
Eu não sei se gosto de utilizar
os termos 'adepta' e 'poliamor', necessariamente, até mesmo por não ter muita
familiaridade com as terminologias de um ponto de vista político. Acredito,
sim, na ideia de que há uma normatividade monogâmica em boa parte das
sociedades contemporâneas, e que tal normatividade deve ser desconstruída.
De um ponto de vista mais
pessoal, gosto de imaginar que as pessoas com quem me relacione possam
eventualmente constituir uma rede de afetividades e sexualidades livres, de
acordo com seus desejos e perspectivas de vida. Incluindo-se, aí, a
possibilidade de que haja, também, relacionamentos monogâmicos não normativos
dentro destas redes.
Bem, algumas análises pessoais,
rs. Amo várias pessoas, e me sinto muito bem por amá-las, a cada uma delas.
Estes amores têm sido uma das minhas forças mais importantes e bonitas, apesar
de eu às vezes ter dificuldades de expressar minha gratidão e felicidade a
elas. A uma destas pessoas, tenho amado de uma forma especial (e confusa), mas
seria deselegante nomeá-la, aqui – sem contar, ainda, que em um contexto
mononormativo, as formas de compreensão do que signifique amar de diversas
formas sejam demasiado limitadas. Sonho com o dia em que, existencialmente,
tenhamos repensado nossas formas de relacionamento amorosos (e não me restrinjo
ao considerar que formas sejam essas), de maneira a desconstruir e desaprender
determinadas relações de poder e individualismos, e que os amores possam
flutuar ao sabor do vento de desejos solidários e construtivos, inclusive sem
negar a possibilidade de que haja momentos de estabilidade amorosa agenciada.
Neste sentido, por exemplo, é que penso que alguns arranjos monogâmicos
poderiam ser interessantes para mim, em determinados contextos.
Jaqueline Furacão - Por ser uma mulher trans*,
você já teve problemas familiares e problemas para conseguir emprego?
Vivi - Sim, houve alguns problemas e
atritos com pessoas familiares e amigas após minha autoidentificação enquanto
mulher trans*. Bem aos poucos, alguns destes problemas têm se resolvido, e
outros não; algumas relações foram cortadas, outras fortalecidas, e sem dúvidas
minha identidade de gênero foi um elemento importante para se analisarem as
mudanças recentes nestas relações interpessoais.
De um ponto de vista
profissional, também houve problemas, apesar de minha posição privilegiada em
termos de acesso a recursos educacionais e profissionais. Atualmente cursando o
mestrado sem bolsa de pesquisa, tem sido complicado procurar por trabalho em
minha área de formação e atuação anterior (ciências econômicas e auditoria
interna) – seja por cissexismos institucionais ou pela insegurança decorrente
deles –, e quando consegui um trabalho aquém de minhas qualificações, não houve
a possibilidade de desempenhar meu trabalho utilizando-me de minha
autoidentificação enquanto mulher.
Jaqueline Furacão - Por que um dia da visibilidade
trans* é importante?
Vivi - Vou utilizar a definição que li
em uma das postagens da blogagem coletiva para o Dia da Visibilidade Trans*:
ele “existe para dar voz, identidade e cidadania às pessoas trans*, que vem a
ser pessoas transexuais, transgêneros, travestis ou outras que não se
identificam com a ideia normativa que temos de “masculino” e “feminino”.”
Neste sentido, acredito que este
dia de celebração e luta carregue consigo uma potência bastante significativa.
Mas precisamos sempre estar criticamente atentas, enquanto pessoas trans* e
aliadas, para que este dia signifique descolonização, e não apropriação
cistêmica para fingir que as coisas estão melhorando e o mundo é legal. Porque
não é.
Nenhum comentário:
Postar um comentário