Foto retirada do site do projeto Transversus |
Na entrevista de hoje, vamos conhecer um pouquinho mais de Leila Dumaresq. Ela
tem 36 anos de idade. É designer de jogos e
formada em Filosofia. Recentemente participou do projeto Tranversus com seu
depoimento sobre ser uma mulher trans. Tem um blog e uma página chamados "Transliteração". Fiquem com o carisma de Leila:
Jaqueline Furacão - Leila, vi que vc está usando o nome de Lígia no Facebook?
Parece que o Facebook te bloqueou com o nome de Leila. O que aconteceu? Conta
um pouco pra gente como as políticas da rede social podem ser transfóbica.
Leila - O Facebook acatou
uma denúncia de perfil falso contra mim. A denúncia foi anônima, a condenação
foi sumária e minha única possibilidade de usar o perfil novamente foi mudar o
nome para Lígia (que me veio à cabeça na hora). O problema é que para eu poder
voltar a usar Leila, tenho que enviar meus documentos para que eles, segundo os
termos que eles mesmos escreveram, imponham a mim o nome escrito no RG. É
exatamente isso que eles dizem que vão fazer: Mudar o perfil e, junto, as
minhas fotos marcadas, comentários, e até mudar a citação que outas pessoas
fazem de mim. É bastante aterrorizante quando o nome civil está errado.
Muitas pessoas me
tranquilizaram dizendo que o facebook “alivia” para pessoas transgêneras. Mas
isso me incomoda também. Eu não quero que o facebook seja “bacana” comigo.
Quero o mesmo direito de uma pessoa
cisgênera, só porque a constituição diz que minha imagem pública tem o mesmo
valor que a de qualquer outro cidadão. Claro que ter o nome respeitado por quem
quer que seja é mérito da pessoa ou organização. Neste caso, eu estou sofrendo
discriminação institucional também.
Apesar de saber que
o Facebook não está expondo pessoas trans, só pra garantir, vou renovar meus
documentos para eu ter mais certeza que serei reconhecida como mulher
transgênera. Porque a foto ao lado do nome no documento será a única informação
atestando a condição. E eu fico com a dúvida: Que será que o funcionário da
rede social verá em minha imagem quando deparado com o nome civil nos
documentos?
Imagino que tudo
terminará bem. Hoje, eu já conto essa história para conscientizar as pessoas de
como sente-se uma pessoa socialmente vulnerável. Para que saibam quanta
burocracia a mais eu enfrento e quanta coisa dada como garantida, no meu caso,
depende de arbitrariedade ou boa
vontade.
Jaqueline Furacão - Vc é filósofa e designer de jogos. Como vc concilia essas
duas coisas?
Leila - Pra falar a verdade,
eu nunca tentei conciliar. Quando eu estou procurando emprego escrevo que sou
“generalista” no currículo, mas não tenho problema em dizer e ouvir que minha
vida foi um tanto quanto errática.
Eu trabalhei com
essas áreas porque eu sempre quis mexer com algo que me apaixonasse. E fui tão
teimosa nesse propósito que me envolvi em duas áreas que não dão dinheiro com
facilidade (não dá pra usar uma para financiar a outra). Hoje eu acho isso que
fiz meio louco, mas não me arrependo porque também eu vejo que conquistei
habilidades e sensibilidades que me ajudam a resistir, sobreviver e me
desenvolver apesar das lutas sociais e políticas. No final das contas eu gosto
de pensar no que está acontecendo comigo.
Jaqueline Furacão - Quais são seus planos profissionais para o futuro?
Leila - É tudo muito novo
para mim. Eu não trabalhava mais com games fazia cinco anos. Então eu fui
chamada por um grande parceiro de volta à ativa em 2013. Isso trouxe novos
contatos, oportunidades e dilemas. O mercado de games é hoje bastante competitivo
e dinâmico, mas há espaço para gente independente como eu.
Pretendo
comunicar-me mais com as pessoas: através de palestras, seminários ou cursos.
Também pretendo lançar micro games, a menos que surja algum projeto maior para
eu participar, mas isso depende de conversas que estão em andamento.
Há muitos projetos
na verdade, mas eu gosto mesmo é de fazer surpresas.
Jaqueline Furacão - Você toca uma página no Facebook e um blog, o
Transliteração. Você os descreve como um blog de humor, crítica e escrita
transgênera. Diante do humorismo atual, em que a transfobia rola solta, falta
crítica e falta escrita transgênera. Vc acha que consegue fazer tudo isso,
criticar e falar de transgeneridade sem perder o humor?
Leila - Quanto à crítica e à
escrita, faço meu trabalho de formiguinha, não é? Dou minhas ideias e as deixo
disponíveis para a comunidade aproveitar. Penso meu trabalho como contribuição.
Escrevo para melhorar nosso repertório de ideias e argumentos. Não me foco em
vencer a guerra. Só tento fazer a minha parte em cada batalha.
Eu participo também
de grupos presenciais de apoio mútuo. Esse cotidiano ajuda a equilibrar a
perspectiva macabra das estatísticas e lutas institucionais horrorosas. É fato
que conseguimos ajudar as pessoas (pelo menos a sobreviver com mais dignidade).
Isso é um ótimo remédio para enfrentar o horror institucional. Ter ajuda,
também é importante. Por isso digo que faltam grupos de apoio e acolhimento no
movimento. Precisamos muitos, para todas as pessoas unirem-se em torno deles e
a partir deles enfrentar a barra pesadíssima de sobreviver.
Já diante do
humorismo atual eu traço uma linha divisória. Me posiciono de um lado e ele do
outro:
Os humoristas têm
dito que eles fazem crítica de costumes. Eles mostrariam o ridículo e o absurdo
do ser humano através de personas (ou personagens) que representam defeitos que
as pessoas não querem ver nelas mesmas. Também afirmam que o humor se outorga
liberdade total para criticar qualquer comportamento ou costume.
A princípio, nada
alarmante. Apenas uma definição. O problema é o que eles fazem a partir daí: e o maior desserviço que essa “escola” de humor faz é nivelar privilegiados e
oprimidos. No campo discursivo desse humor, oferecer uma banana a um negro é o
mesmo que oferecer protetor solar fator mil à um branco. Assim, eles apagam a
opressão histórica. Neste ponto, o princípio de que todos devem suportar
crítica humorística dos costumes não faz distinção de valor entre a humilhação
preconceituosa, a crítica do preconceituoso. São apenas conteúdos válidos de um
repertório permitido.
Esse humor é
colonizador. Ponto final. Não é mais a cansativa polêmica da liberdade de
expressão quando conseguimos apontar o
que há de ofensivo e prejudicial neste humor. Infelizmente, a própria sociedade
deveria regulá-lo, não aceitando esse tipo de trabalho. Por hora, o que posso
fazer é apoiar todos os militantes que denunciam as formas desses abusos.
Enquanto houver vozes da consciência social, há esperança.
Existe outro humor
para eu usar? Principalmente, existe um que funcione diante do horror que é
viver em um campo de extermínio de transgêneros como a sociedade brasileira? Um
país que ceifou por ódio a vida de uma pessoa trans a cada três dias?
Claro que sim! E não
preciso ir muito longe para citar minhas referências:
Primeiro, gostaria
de citar a página do facebook Travesti Reflexiva. Elas são politicamente
incorretas, provocadoras incontroláveis, não perdoam ninguém. Muito parecido
com o que os humoristas mainstream fazem. E onde está a diferença? A proposta
dessa página é justamente desconstruir o estereótipo negativo da travesti ao
mesmo tempo que detonam e denunciam outros personagens e situações de opressão
que elas sofrem. Eu diria que a liberdade de expressão no humor serve para
proteger a mensagem desse pessoal e não os abusos que citei anteriormente.
Outra referência
contemporânea é o George Takei. Ele foi o Capitão Sulu em Jornada nas estrelas.
Usa sua fama e um incrível carisma para defender e divulgar a causa LGBT e a
memória dos campos de concentração para japoneses (nos quais ele esteve,
inclusive) nos EUA. Quando o estado do
Tennessee criou uma lei absurda proibindo a palavra 'gay' nas escolas ele fez
uma campanha pública para que as pessoas usassem seu nome no lugar da palavra 'gay'.
Ficou muito engraçado, porque as pessoas falavam: “É OK ser Takei” como forma de
resistência pacífica.
Há também o Charles
Chaplin, que só para citar um caso, filmou o Tempos Modernos: fazendo um
pastelão, ele mostrou claramente como a revolução industrial desumanizava os
trabalhadores. Contraponha isso a qualquer comédia moderna, que mostra sem
parar “pessoas atrapalhadas” que superam “seus defeitos” nas mais diversas
situações.
E quero terminar a
lista com os Doutores da Alegria e o Patch Adams (o verdadeiro, procure a
entrevista no Roda Viva). Eles mostram claramente um tipo muito sutil, delicado
e ao mesmo tempo poderoso de humor.
Com eles eu aprendi
que a alegria, por ser uma emoção contagiante, tem o poder de espantar o horror
dos nossos corações. É uma ferramenta de coragem e resiliência diante do
medo. Porém, esse mesmo efeito pode ser
um instrumento de banalização do mal, fazendo com que as pessoas riam ao invés
de horrorizar-se diante de certas situações.
Eu sou contra o uso
colonizador e deslegitimador de identidades oprimidas e odiadas. Acho que a
linha que separa um tipo do outro é bem clara.
Jaqueline Furacão - Os encontros trans que acontecem no Centro de Referência
LGBT de Campinas, dos quais vc participa, são bem diferentes dos espaços
acadêmicos que debatem transgeneridade. Quais as diferenças entre eles que
fazem com que vc frequente os dois espaços?
Leila - Em primeiro lugar,
todas as vozes têm o mesmo peso. O que às vezes causa uns problemas de
entendimento, mas essa igualdade mostrou-se riquíssima. Minha sorte foi chegar
completamente destruída pelo cistema. Chegasse eu lá com um pouco mais de
identificação com meus privilégios acadêmicos, talvez fosse outra pessoa, muito
mais chata na minha opinião. Porém (sorte minha, sempre vou ser grata), eu
cheguei lá terraplanada pelo cistema porque o jogo dele é feito para nós
perdermos sempre. E justamente minha educação formal, da escolinha até a
universidade me ensinou a seguir as regras. Devia ter um jeito de vencer, mas
no jogo da opressão não há. Então eu já não acreditava em nada que havia aprendido
naquele momento.
Nesse clima que fui
lá e ouvi. Aquelas mulheres trans me acolheram e ensinaram a ser mulher como
elas. Como disse, eu queria aprender. E elas me ensinaram.
E aconteceu algo
mágico disso: eu adquiri uma autêntica cultura feminina com elas. Um ser mulher
codificado em gestos, relações com roupas, cosméticos, corpo, significações e
símbolos. Inclusive, essa cultura me deu elementos intuitivos para lidar com a
identidade e alteridade do feminino cis e trans. É um grupo bastante diverso quando
cheguei nele. Ainda é bastante identificado com a transexualidade, mas não é
exclusivo de mulheres trans.
Eu também fui
usuária do CR e tive contato com diversas mulheres trans que não frequentavam o
grupo. As conversas com todas elas também me ajudaram a construir a mulher que
sou. E nada disso passava diretamente pelo discurso político ou acadêmico. São
um pequeno patrimônio cultural imaterial que herdei da comunidade de mulheres
trans de Campinas que por qualquer motivo frequentam o CR: é o que entendem por
ser mulher trans donas de casa, prostitutas, cabeleireiras, operadoras de
telemarketing, vendedoras, moradoras de rua, estudantes, modelos.
Claro que eu faço
isso do meu jeito. Hoje entendo como um elemento interseccional da minha
identidade, mas é um muito precioso. Ele codifica minha existência e meu lugar
no mundo. Um lugar concreto, entre pessoas, localizado temporal e
geograficamente.
Isso tem uma
consequência muito intensa e bonita na minha relação com outros grupos aos
quais eu também pertenço: eu me sinto
deslocada de alguns discursos acadêmicos ou políticos. Esses signos
indômitos que eu trago nem sempre são bem expressos nos termos dos discursos
políticos ou acadêmicos. Por mais corretos que sejam os discursos
institucionais, eu não quero abrir mão da minha própria vivência.
Começo a perceber
que não estamos dando conta destes que chamo signos indômitos. São sutis,
transmitidos por vivência, são em parte verbais, em parte comportamentais, mas
definitivamente são identitários. São culturais. Eu diria que a maior parte das
minhas discordâncias dentro do movimento online e de certos estranhamentos e desentendimentos são um fruto interessante
dos meus signos indômitos e meu treinamento discursivo acadêmico.
Eu falava como
brincadeira que era a filósofa transgênera da região entre a rodoviária e a
prefeitura de Campinas. Pelo visto, o fundo de verdade dessa brincadeira é tão
profundo e rico que pode conter a chave para apaziguar discussões e unir grupos
de pessoas transgêneras Brasil afora. Precisamos levar mais a sério para o fato
que grupos identitários isolados produzem identidades diferentes e autênticas.
E cada uma dessas contém experiências de resistência únicas, que nem sempre
serão codificadas por um discurso político ou acadêmico. Hoje estou despertando
para o fato que esse “ruído” em nossas discussões pode tornar-se um grande
coro, em que cada voz traz uma história diferente de sobrevivência, superação e
resistência.
Jaqueline Furacão - Por que o dia da visibildiade trans é importante?
Leila - A compaixão é uma questão
humana essencial. Toda opressão é baseada em retirar a compaixão de uma parcela
da população. É a naturalização da condição subumana.
Além disso, para
submeterem-se de livre e espontânea vontade, as pessoas precisam ter medo,
muito medo. Aí que entra o discurso de ódio. Eu poderia listar uma lista enorme
de opressões. Todas funcionam assim e todas têm um interesse muito específico
de controle social.
No caso das pessoas
transgêneras, as regras que quebramos violam o estado de terror a respeito da agência
individual sobre os corpos. O espantoso é como pessoas conseguem viver um
roteiro sempre igual a respeito dos seus corpos e vivências e nunca
perguntarem-se sobre o que estão fazendo de suas vidas, se não há outras formas
de organização social que lhes permitira explorar mais e melhor suas
potencialidades no tempo de suas vidas, se não há um estado corporal mais
interessante. É absurdo que as pessoas não se questionem. Só é cômodo não se questionar, mas de modo algum isso é bom. As pessoas sofrem e pensam que tem
que ser assim mesmo.
Temos que ter um
espírito mais explorador. “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Há ousadias
muito necessárias. Admiramos do modo errado esses heróis das histórias. Esse
“mais do mesmo” só interessa aos pouquíssimos que estão ganhando muito com
isso.
Mais um show de lucidez dessa amiga tão querida e especial que é Leila Dumaresq! Que sua serenidade e sabedoria contagiem o mundo numa epidemia pra lá de saramaguiana!
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