1) O que ser drag tem a ver com gênero?
Essa pergunta é um tanto quanto delicada para mim, pois acredito que o universo que hoje chamamos como “drag
queen” vai além de uma arte. Não nego de jeito nenhum que o
fazer drag tenha uma relação estreita com a arte, mas também não
posso negar que se trata de um fazer que tem a ver com o gênero. A
drag, diferentemente do clown ou de um simples personagem, traz
consigo uma questão de gênero mais profunda que não está presente
nas profissões artísticas puramente. É um tipo de experiência que
está relacionada com o gênero e que contempla tanto pessoas cis
quanto pessoas trans.
No discurso mainstream
sobre o que é ser uma drag, entende-se que um homem gay cisgênero
“se monta” para fins artísticos transformando-se numa figura
feminina. O que há de incompleto com essa ideia na minha opinião
caminha em dois sentidos. O primeiro é que não são apenas homens
cisgêneros que “se montam”, mulheres trans e cis também podem
se montar. E em segundo lugar, eu questiono a cisgeneridade dos
homens gays cis que se montam.
A drag queen afeta todo aquele que pratica essa
expressão de gênero. E não há cisgeneridade que passe incólume
aos seus efeitos. É claro que cada pessoa lida com isso de maneira
diferente. Temos algumas amigas drags que levam vida dupla. Separam
muito bem os limites de seu “personagem” (eu diria persona) e seu
“eu verdadeiro”. De dia são rapazes que trabalham em um emprego
formal e à noite são as gatas que querem ser. Para mim, essa é
uma experiência de gênero muito parecida com a de Cross-Dresser,
que na maioria dos casos também levam vidas duplas, com a diferença
de que talvez a identidade feminina não seja tão pública quanto a
de uma drag.
Por outro lado, como é o meu caso, não
separo mais onde termina Jaqueline Ramirez e onde começa “o menino”. Minha vida é ser drag 24horas por dia. Não sou drag apenas quando estou montada. Sou drag também desmontada. E o
fato de ser drag faz com que eu tenha minhas demandas e as minhas especificidades. Demandas de que necessito quando estou montada, mas também demandas de que necessito quando estou desmontada. Um exemplo disso, é a solidão amorosa, aquela muito
bem descrita para as mulheres negras e as travestis. Essa solidão
frequentemente assola a vida da drag. Já ouvi “n” relatos de
drags que são preteridas por serem drags. E podemos te dar em
detalhe mais uma porção das nossas questões, mas por ora queremos
nos ater aos limiares da drag com a arte.Tanto é assim, que existem discursos aferrados que negam a continuidade da drag quando se está desmontada. Estes discursos que lutam por separar uma coisa da outra, no fundo, tem relação com a solidão que sofremos. É um pedido de socorro: ME NAMORE, NÂO QUERO FICAR SÓ... MINHA DRAG É SÓ UM PERSONAGEM
Existem muitos casos de pessoas que se montam, mas
não tem a finalidade artística. Temos muitas amigas que se montam
para dar simplesmente um rolezinho na balada, e o fato dessa pessoa
se montar representa, em muitos casos, um alívio na sua expressão
de gênero. Montar-se pode ser uma experiência libertadora, pois é
uma brecha possível para essa expressão. Sabemos que a sociedade
vigia os nossos corpos o tempo todo e o corpo trans é excessivamente
vigiado. O fato de você fazer drag é uma brecha, é uma permissão
– que antes era dada somente no carnaval – que tem passado a ser
cada dia mais aberta para as pessoas vivenciarem a cruzada no gênero,
pois depois, vc chega em casa, guarda o figurino no armário, toma um
banho e toda aquela coisa feminina pode esvair-se pelo ralo.
Drag queen é uma porta de entrada para a
EXPERIÊNCIA transgênero. O que defendo é que à medida que essa
experiência passa a se tornar mais frequente, ela vai modificando a
sua expressão de gênero de modo que você passa a desnaturalizar o
seu gênero dado.
Antes de responder definitivamente a pergunta inicial ainda cabem algumas palavras sobre o que entendo das identidades
trans. A palavra “trans” é dada como bastante óbvia nas
publicações de internet e nos círculos ativistas. Mas, na realidade, ela não é uma palavra óbvia.
“Trans” é muitas vezes usada como uma abreviação de “transgênero”.
Transgênero é um termo de ampla cobertura que faz oposição ao
termo “cisgênero”. Todo mundo na militância atual brasileira
fala de boca cheia essas duas palavras: “Cis” e “trans”. Mas
muitas vezes esquecemos do “gênero”, o qual elas qualificam. Cis
é manter-se alinhado à ordem compulsória do gênero instituído no
nascimento a partir da genitália e “trans” é uma subversão a
essa ordem.
Existem muitas formas de expressarmos a
transgeneridade e esses recortes da transgeneridade têm a ver com a
realidade política e social do entorno em questão. No Brasil, são
duas as formas canônicas que as pessoas entendem a transgeneridade:
a travestilidade e a transexualidade. Mas a transgeneridade pode se
dar TAMBÉM de uma maneira diferente dessas duas. Há muitas outras formas de
experienciarmos o cruzamento dos gêneros. E a minha forma de
experimentar isso é fazendo drag, uma experiência de fronteira
entre os mundos trans e cis.
Muitas vezes, as pessoas querem invalidar meu discurso dizendo que não sou uma pessoa trans de verdade. Primeiro
que essas pessoas entendem a palavra “trans” apenas como sinônimo de
“travestilidade e transexualidade”. E, de fato, não sou nem
mulher transexual e tampouco travesti. Seria desonesto afirmar isto pois tenho acesso a privilégios que as travestis, por exemplo,
não têm. Mas sou outro tipo de pessoa trans, diferente desses dois outros tipos.
Segundo, não posso negar também que – quando estou desmontada - tenho alguns meios privilégios cis, que são negados a
travestis e transexuais. Mas o fato de ter acesso a esses
privilégios não apaga todo o resto. Esse acesso é só metade
(talvez menos) do que sou, a outra metade é fluidez. E o simples
fato de ser uma pessoa fluida aguça a ira e o ódio de todo mundo:
de pessoas cis, que me vigiam por não me comportar na norma, e
de pessoas trans, por não sofrer de algumas mazelas que elas
sofrem.
2) Muitas pessoas fazem questão de separar
totalmente a vivência drag da vivência trans. Você acha que tem
muita travesti e mulher trans fazendo esse trabalho de drag?
Quanto à questão artística de pessoas trans no
Brasil, esses grupos identitários sempre andaram lado a lado.
Eu costumo dividir a cultura drag em dois
momentos, um antes e um depois do seriado RuPaul’s Drag Race. O
paradigma atual é muito influenciado pela cultura drag americana,
que se tornou popular no Brasil por meio deste seriado. Nos EUA a
cultura drag é bem diferente da do Brasil, lá há muitas drags
fazendo isso profissionalmente. Aqui, mal sobrevivemos como artista,
eu acho que não enchem os dedos das mãos o número de drags
brasileiras que conseguem sobreviver de drag. E isso faz toda a
diferença. Lá, a discussão sobre cultura drag, sobre a questão de
gênero no fazer drag já está posta há algum tempo. Aqui ainda
estamos engatinhando, pois o fazer drag ainda é marginalizado. Aos
poucos estamos driblando isso.
Com isso, não quero dizer que a cultura americana
é melhor. Não se trata de uma questão de melhores ou piores, mas
de tempo de prática e reflexão da cultura drag.
No Brasil, o que existia antigamente era a
existência de duas classes: as transformistas e as travestis
artistas. E desde aí, nós fizemos questão de estabelecer as
diferenças entre uma coisa e a outra, embora se tratasse de um
resultado bastante semelhante: artistas trans performando num palco.
Transformistas como Éric Barreto ou Lorna Washington eram muito
diferentes de Marcinha do Corinto, embora todas essas pessoas
subissem no palco para entreter. Sempre existiu essa diferença:
“não, eu não sou travesti, eu sou transformista, sou um homem de
dia”. Ou: “eu não sou transformista, sou travesti, tenho
silicone e tomo hormônio, e sou assim 24 horas por dia”.
De lá pra cá, muita coisa mudou. O nome
transformista foi deixando de ser usado e o termo “drag queen”
foi se tornando mais comum, e se consolidou de vez na década de 1990
depois do sucesso do filme “Priscilla, a rainha do deserto”. Na
década de 1990 tivemos um primeiro boom “drag” no Brasil. No
fundo, a palavra “drag queen” já existia, mas ela era usada para
designar uma das tantas linhas do transformismo. A drag era aquela
que exagerava na maquiagem e no figurino. Hoje, de uma maneira bem
simplista, podemos dizer que “transformista” tornou-se uma linha
de drag. E drag acabou se transformando no fazer artístico que tem a
ver com a “montação”. A palavra drag meio que sublimou essa
dicotomia do passado que existia entre transformistas e travestis
artistas. Mas sublimou em partes, porque até hoje existe esse
pensamento de que “drag” é uma coisa e “pessoa trans fazendo
drag” é outra.
Mas, por outro lado, entendendo a drag como o
fazer artístico que tem a ver com a “montação”, devemos
assumir que não só travestis e mulheres trans podem ser drags como
também as mulheres/homens cis o podem. Em suma, todo mundo pode ser
drag. Daí a questão de gênero - que já era peculiar quando
falávamos de homens gays cis – agora se torna ainda mais
interessante quando falamos da universalidade do fazer drag.
Mulheres cis têm uma experiência transgênera
fazendo drag? Talvez não, mas elas têm uma experiência de gênero
que tem a ver com a feminilidade. Resta saber o que a drag lhes
proporciona nesta feminilidade que extrapola o que a cisgeneridade já
lhes oferece.
Homens cis héteros ou gays: qual o poder da
experiência drag na realidade subjetiva de seus gêneros?
Mulheres trans: há muitos casos em que o fazer
drag se torna a porta de entrada para a
travestilidade/transexualidade. Há muitos casos de pessoas que
começaram a fazer drag em algum momento da vida e mais adiante elas
se tornaram travestis/transexuais.
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