O jovem chinês é novato no
restaurante e sofre de dores de dente crônicas. Ele é apresentado ao público com
os outros quatro que trabalham lá na minúscula cozinha. Já o núcleo que retrata
a história da irmã recorre a uma metáfora: à fábula da cigarra e da formiga. A
irmã é a cigarra que fica presa nas garras da formiga. Assim, a história do
irmão é abordada de maneira mais explícita e faz uma crítica a exploração do
trabalho, enquanto que a história da irmã é apresentada de maneira mais simbólica/poética
e faz uma crítica à exploração sexual.
Ao longo da trama essa lógica se
inverte. A cigarra deixa de ser cigarra e é representada como uma jovem que
caiu na rede de prostituição. Inclusive há cenas em que a jovem é abusada
sexualmente e isso da fim a sua vida. Ao passo que no enredo do irmão, o jovem começa
a ter delírios por causa da dor e sua
morte é esboçada de maneira mais poética.
Embora não haja protagonistas na
peça, esses dois núcleos são os fios condutores da trama. No entanto, às vezes eu
tenha ficado com a impressão de que houve um desequilíbrio entre a núcleo do
irmão e o da irmã. Pareceu-me que a história mais importante era a do irmão.
Talvez tenha ficado com essa impressão porque o jovem oriental é apresentado de
modo mais concreto e a jovem de maneira mais metafórica. Notei que muita gente
não entendeu que a cigarra ou a jovem oriental era a irmã jamais encontrada.
Para essa pessoas, a trama principal foi só a do jovem que morre de dor de
dente em meio ao caos de uma cozinha que não pode parar. Então, de certo modo, a história do menino
chamou mais atenção e foi mais explícita que a da história da menina. A
passagem de uma representação mais concreta para uma representação mais
metafórica fortalece mais a história do jovem. Enquanto que o contrário, a
representação mais simbólica transformada em realismo, invisibiliza mais a
personagem feminina.
A crítica é tão profícua que a
exploração do trabalho se dá com o homem e a exploração sexual se dá com a mulher.
A história mais destacada é a do homem e não a da mulher. O monstruoso do homem
- o sangue na boca - é encenado. A violência contra a mulher é apenas simbolizada,
narrada. É um retrato tão real da sociedade que na história os descompassos de
gênero são normalmente tomados como naturais.
Por outro lado, o que mais me
chama a atenção na história e, em especial, nessa montagem é que os gêneros dos
personagens e dos atores não estão sempre alinhados, ou seja, atores e atrizes
representam tanto papeis de homens quanto o de mulheres. E, particularmente,
essa peça conta comigo: uma drag queen. Achei um ato tremendamente político o
de tratar dessas questões com naturalidade, ainda que
Tive quatro papeis na peça. De
primeira, fui escalada pra fazer uma das aeromoças que mora no mesmo prédio em
que funciona o restaurante. Num primeiro momento eu não gostei muito porque
achei meio óbvio. Não há nada mais caricatural uma drag queen fazer o papel de
uma aeromoça à la Barbie Girl - e isso no núcleo cômico
do espetáculo. Mas
depois eu fui encontrando prazer em fazer essa aeromoça. Acho que dos meus
personagens é o que mais cativa o público e que, de fato, é o que eu
interpretei sem muitos esforços.
Também fiz uma rápida passagem
pela cozinha. Todos os 15 atores interpretaram o papel de um oriental na
cozinha. Essa personagem nem deu tempo muito de eu entendê-la. Mas foi uma das
que eu mais me diverti pelo simples fato de que era uma cena bem coletiva e que,
para ter êxito, necessitava do jogo com os colegas.
Interpretei também a cigarra na
fase glamour. Sinto que esse foi um personagem que ganhei de presente dos
diretores. A atriz que faria esse papel teve que deixar o grupo e eu fui
escalada pra substituir. Iríamos fazer uma dublagem, uma cigarra que dublaria
uma canção. Mas em um dos ensaios o som falhou e a cena tinha que continuar,
então cantei. Os diretores gostaram, gostaram da música que escolhi (Como a cigarra - composição de Maria Elena Walsh e imortalizada na voz da Mercedes
Sosa) e no final foi isso. Foi a minha cena de destaque em vários sentidos. E
com certeza, o primeiro deles foi a coxia. O tempo de troca de figurino era
limitadíssimo. Atuava numa cena antes, em que usava um figurino completamente
diferente (e isso incluía a peruca) ao da cigarra. Era uma correria danada, mas
que com muita ajuda dos colegas de elenco, dava sempre certo. O segundo desafio
era entrar, dançar EEE cantar. Interagir com a formiga e com a plateia foi
muito divertido.
Depois da cantoria, a cigarra começa a definhar. E nessa mesma
cena ela é humilhada. Mudar esses estados e implorar por comida também foi um
desafio.
Mas o que eu mais gostei nessa
cena é o que significou cantar pra mim. Como vcs sabem só o macho das cigarras
é quem canta. Eu fiz o papel de uma cigarra fêmea. Uma cigarra fêmea que canta.
Portanto, fui uma cigarra transgênera e esfreguei meu falo transgênero na cara
de todo mundo ali.
E, finalmente, o quarto papel que
fiz foi o de um jovem rapaz. Foi o papel mais difícil de fazer. O personagem
era um jovem rapaz que acabou de descobrir da gravidez de sua namorada. Ele não
aceita a situação. Depois ele ainda procura uma prostituta - a cigarra-mulher -
para compensar suas frustrações. O complexo dessa cena era que eu, uma drag queen,
fazia o papel de um homem, ou seja, um menino que se monta de menina fazendo o
papel de um menino.
Meu objetivo era fazer o público esquecer toda aquela
maquiagem exagerada no meu rosto, era esquecer o corpo feminino, esquecer o relevo
dos seios e enxergar em mim um cara extremamente boçal e machista. Tentei dar
bastante contraste com as demais personagens femininas que encenei.
Foi muito bom ter conhecido esse
grupo - não sem os conflitos que não faço questão de evitar, tratou-se de
momentos de intimidade, amizade e respeito inesperados por mim. Foi muito bom
ter conhecido o teatro e a dança nessa profundidade. Foi muito bom ter
conhecido nossos diretores-guias. Foi muito bom ter encontrado esse texto - que
no começo achei um saco. Foi muito bom ter o retorno e o carinho do público.
Sinto que a Jaque cresceu. E é com esse sentimento que O Dragão Dourado fecha suas portas.