Hoje
eu vou relatar uma situação que me ocorreu no final de semana e que é muito
representativa do que acontece frequentemente com pessoas transgêneras e
não-binárias.
Para
início de conversa gostaria de me identificar como uma drag queen e esmiuçar um
pouco mais sobre o que isso significa para a minha condição de gênero. Como já
disse num post passado, ser drag pra mim (mais especificamente a minha
drag) é uma performance passageira da
mulher/feminino. Embora seja muito difícil delimitar quando eu começo e
quando eu termino o ato de ser mulher/feminino, é no momento drag que faço isso
mais intencional e conscientemente. Sendo assim, quando estou de Jaqueline, sou
feminina e sou mulher. Na medida do possível, as pessoas me percebem assim, mas
nem todas me tratam assim.
Agora
já posso contar o caso:
Fui
numa balada frequentada pelo público LGBT em Campinas. Já fui inúmeras vezes
àquela casa, mas sem estar montada. Ao longo do tempo, fiz muitos amigos,
dentre eles os funcionários e seguranças. Principalmente os seguranças se
acostumaram comigo na minha condição masculina e a primeira vez que apareci lá
montada, eles ainda hesitavam em me tratar como uma mulher. Pra mim, isso tudo
é muito compreensível, dada a nossa educação cissupremacista. Não vejo nenhuma
estupidez no fato de os seguranças me tratarem involuntariamente como homem.
Mas, a coisa mudou de figura. Nesse nosso primeiro encontro, eu tive uma
conversa tête-à-tête com eles e expliquei que havia mudado e que a partir
daquele dia eu só me apresentaria na noite campineira como Jaqueline. Disse que
gostaria de ser chamada de Jaqueline. A princípio, eles não engoliram e
continuaram me chamando pelo meu nome civil. Relevei, mas na descontração
sempre dava o toque de que meu nome não era aquele. Foi assim a noite toda.
No
sábado passado (08/03), voltei à casinha e mal virei a esquina o segurança
gritou em alto e bom tom meu nome civil: _ La vem o Diego! Engraçado que sempre
me chamaram pelo meu sobrenome: Jiquilin. Mas nesse dia, deixaram de me chamar
de Jiquilin para me chamar de Diego. Daí, eu cheguei e fingi que nada estava
acontecendo. Mas um segurança em especial, esse que bradou meu nome civil assim
que me viu, não parou de falar mais esse nome. Sempre que podia, ele terminava
as sentenças acrescentando meu nome civil. Ignorei o quanto pude. Mas chegou o
momento de ele preencher meus dados, seu outro colega segurança perguntou meu
nome e eu disse: Jaqueline! Todos caíram na risada, zombando de eu me
apresentar com um nome desses. De imediato, o segurança principal disse que era
para colocar Diego na ficha. E assim seu amigo o fez. Quando eu tomei a ficha
em minhas mãos e pude constatar que, de fato, lá estava escrito
"Diego" (sem sobrenome, só assim), fiquei furiosa e piquei o cartão.
Disse que aquilo era um ato de transfobia. Muito provavelmente nenhum deles ali
sabia o que significava isso. Daí eu comecei a explicar que aquilo não era
certo. Nessa altura, o "gerente" (ou um superior, não sei exatamente
a função daquele funcionário - ou até mesmo se é o dono) já estava do lado ouvindo tudo. Eles argumentavam
comigo que deveriam usar o meu nome de RG. Eu achei muito estranho que só era
necessário meu pré-nome no cadastro. Mas o argumento final dado por mim foi quando mencionei o nome de uma drag famosa que costumava frequentar o local. Perguntei se eles
sabiam o nome civil dela e com que nome ela entrava lá. Eles não sabiam e ela era cadastrada com o nome de drag!
Bom,
tudo isso demonstra como as pessoas tem um fetiche pelo nome civil e como a
transfobia se mascara através da "justiça". O fato é que não se trata
apenas de cumprir normas e leis, eles se aproveitam para zombar do seu nome o
tempo todo. É um ato cruel e sádico que eles sentem em dizer que sabem seu nome
civil.
Isso
acontece diariamente com as mulheres transgêneras, que são mulheres o tempo
todo. A mídia, por exemplo, não perde tempo se souber o nome civil da mulher trans*.
Quantas notícias vcs já leram nos últimos tempos em que se escreve bem
claramente o nome civil, principalmente, de travestis? Ainda por cima, muitas
vezes a mídia tem a pachorra de emendar logo após o nome civil, a frase:
"mais conhecida como ..." ou "nome de guerra".
Nomear
é uma coisa muito séria, faz parte das identidades e inscreve as pessoas na
sociedade. Ser tratada como se quer deveria ser um direito básico e não um privilégios de homens e mulheres ocidentais cisgêneros.
É que o modelo de nome civil documentado em RG é muito falho e COLONIZADOR.
Fico pensando em certas culturas ameríndias, em que o sujeito recebe vários
nomes ao longo da vida. Quando esse índio vai exigir seus direitos ao estado,
qual nome ele deve apresentar em seu RG? Deveria ele escolher entre um único
nome? E as pessoas transgêneras que desejam alteram seu nome, devem ficar a
mercê das carniçarias de médicos e juízes cisgêneros? E as pessoas de gênero
não-binário que têm mais de um nome, devem primar seu nome designado, assim
como seu gênero, ao nascimento?
O
modelo de se ter um nome em um documento não contempla minorias. É elaborado
pelas classes supremacistas e para ela. Nós apenas temos que nos enquadrar
sempre. Mas, se em tempos pós-coloniais, os sujeitos históricos tem voz, é
chegada a hora de também repensar a maneira como nos denominamos a nós mesmos e
uns aos outros.
P.S.: Passado um tempo, devo fazer uma ressalva. O estabelecimento referido nesse relato reconheceu o erro. E nas outras vezes que voltei lá fui muito bem tratada. Tenho sido acolhida com muito carinho. Compreendo o conflito inicial de estranhamento.
P.S.: Passado um tempo, devo fazer uma ressalva. O estabelecimento referido nesse relato reconheceu o erro. E nas outras vezes que voltei lá fui muito bem tratada. Tenho sido acolhida com muito carinho. Compreendo o conflito inicial de estranhamento.